Exame Comparativo da Regulação de Sinistros no PLC do IBDS e do Projeto de Reforma do CC
Voltaire Marenzi - Advogado e Professor
Lendo o Informativo Migalhas, de terça-feira, 08/10/2024, sob o título da Regulação de Sinistros no Anteprojeto de Revisão e Atualização do Código Civil,[1] que trata da reforma do atual diploma legal e examinando artigos correlatos insertos no PLC 29/2017, também conhecido como Marco dos Seguros, que estabelece novas regras para o mercado de seguros privados, vou procurar traçar, de modo resumido, uma análise comparativa entre o que está escrito por uma das integrantes daquela Comissão da reforma do CC de 2002[2]e do correspondente texto no PLC[3], aliás, já aprovado no Senado Federal que deverá voltar à Câmara dos Deputados em razão de emendas apresentadas pela Câmara Alta.
No referenciado PLC a redação começa detalhando que a seguradora será responsável pelas despesas de salvamento para evitar ou atenuar os efeitos de um sinistro iminente, posto que ela é a “fase de execução do contrato de seguro que se consubstancia na prestação de um serviço fundamental para identificar o crédito ao seguro”.[4] Sic.
Neste sentido, no PLC é outorgado como um todo ao consumidor/segurado, mais transparência nos contratos, objetivando a redução de conflitos judiciais, a par de alterações de prazos prescricionais, que se sancionado, passará a contar a partir da data da negativa da seguradora. Haverá também a formalização de contratos por meios digitais, abrangendo todas as negociações sobre consumidores, corretores, seguradoras e órgãos reguladores.
Adentrando, propriamente, no tema pautado à epigrafe, inicio afirmando que no PLC 29/2017, em sua origem, a matéria se encontra vasada em 15 artigos, vale dizer, nos artigos 77 até 92.
No primeiro destes artigos se colha a seguinte redação:
“A reclamação de pagamento por sinistro feita pelo segurado, beneficiário ou terceiro prejudicado determinará a prestação dos serviços de regulação e liquidação que têm por objetivo identificar as causas e os efeitos do fato avisado pelo interessado e quantificar em dinheiro os valores devidos pela seguradora, salvo quando convencionada reposição em espécie”. [5]
Já a autora do texto que trata da reforma do atual Código Civil, enfatiza com toda a propriedade ao escrever:
“A regulação de sinistro não foi tratada com minúcias no CC de 2002 e, no entanto, sempre se mostrou momento sensível das relações securitárias, porque é na regulação que se apuram os fatos que originaram os danos; a existência ou não de agravação de risco, ou seja, o exame da conduta do segurado ou de seu preposto no momento do evento danoso; a extensão dos danos e os valores necessários para a indenização ou pagamento do capital segurado; e, nos casos de recusa do sinistro a apuração dos fatos e provas que levaram o segurador a concluir pelo não pagamento”[6].
No artigo subsequente, vale dizer, o 78 do sobredito PLC se encontra a redação de que “cabe exclusivamente à seguradora a regulação e a liquidação do sinistro”. Mais: “A regulação e a liquidação do sinistro devem ser realizadas, sempre que possível, com simultaneidade, diz o caput deste dispositivo que em dois parágrafos arremata:
- 1º Apurada a existência de sinistro e de quantias parciais devidas ao segurado ou beneficiário, a seguradora deve adequar suas provisões e efetuar, em no máximo trinta dias, adiantamentos por conta do pagamento final ao segurado ou beneficiário.
- 2º A seguradora informará a autoridade fiscalizadora, até o décimo dia útil seguinte, a respeito das provisões e reservas que constituir para a garantia do sinistro.
Por outro lado, também é pertinente a assertiva dita pela jurista integrante daquela Comissão, de que o “segurador é quem detém maior experiência na realização dos atos necessários para a regulação do sinistro. É do segurador o dever de liderar a regulação exatamente porque conhece os melhores meios para que ela se desenvolva com segurança, celeridade e confiabilidade.
Ao arrematar sua matéria, enfatiza que o segurador “tem à sua disposição extenso rol de peritos, técnicos, especialistas que podem auxiliar na identificação das causas do dano e da extensão deles, inclusive para dimensionar o valor dos salvados que é o nome que se dá aos bens que sofreram o risco, porém ainda possuem um valor econômico e podem ser vendidos no estado em que se encontram, com o resultado sendo revertido para o fundo mutual abatidas as despesas administrativas suportadas pelo segurador.
Assim, o melhor caminho para obtenção de bons resultados na regulação de sinistros passa, necessariamente, pela colaboração e confiança entre segurador e segurado quando o sinistro ocorre”[7].
Valho-me, nesta passagem, do que escreveu Alexandre Del Fiori, verbis:
“Regulação de Sinistro:
Termo utilizado para definir a primeira fase de um sinistro, que consiste na elaboração de um relatório com a apuração dos prejuízos realmente sofridos pelo segurado se o evento estiver ou não previsto e coberto no contrato; corresponde quando coberto a valoração dos bens atingidos, se os pagamentos de prêmio encontram-se em dia, franquias ou participações e depreciação (se aplicáveis) a serem deduzidas, existência de cosseguro ou resseguro a recuperar, existência e valoração dos salvados e se há responsabilidade de terceiros no sinistro para fins de ressarcimento; bem como, o cálculo da indenização devida”.[8]
Ao ensejo no que tange ao pagamento do prêmio, salientei na primeira edição de meu livro:
“É verdade que o rigorismo desta norma, especialmente a do art.12, parágrafo único, referia-me ao Decreto-Lei nº 73, de 21 de novembro de 1966, trouxe grandes preocupações ao comércio e indústria porque, entre o início da cobertura, o aviso bancário e o próprio pagamento, poderá ocorrer o sinistro sem cobertura securitária, suspensa na forma da lei, até o pagamento do prêmio”.[9]
É o que a doutrina italiana consagrou: nulo rischio senza premio, em vernáculo, risco zero sem recompensa.
A regulação do sinistro é uma etapa essencial no contrato de seguro, sendo o processo que possibilita ao segurado a efetiva reparação de perdas, de acordo com as condições pactuadas na apólice. A transparência e a celeridade durante essa fase são fundamentais para garantir a satisfação do segurado e manter a confiança no mercado segurador. Além disso, o equilíbrio entre os interesses das partes é crucial, já que a seguradora tem o direito de verificar as circunstâncias do sinistro, ao passo que o segurado deve fornecer todas as informações necessárias para comprovar o direito à indenização.
Neste contexto, o papel do regulador do sinistro ganha destaque, uma vez que ele atua como um mediador entre o segurado e a seguradora, garantindo que o processo ocorra de forma justa, técnica e em conformidade com a legislação vigente. É importante, ainda, que o contrato de seguro seja redigido de forma clara, evitando ambiguidades que possam gerar conflitos durante a regulação.
A evolução do setor, especialmente com o avanço das tecnologias e a digitalização dos serviços, tem proporcionado uma maior eficiência nos procedimentos de regulação, o que beneficia tanto as seguradoras quanto os segurados. Contudo, os desafios persistem, principalmente no que tange à complexidade de alguns sinistros e à necessidade de constante aprimoramento normativo e operacional.
Assim, a regulação de sinistro é mais do que um simples trâmite burocrático, sendo um pilar de confiança mútua que sustenta a relação entre seguradora e segurado, refletindo a solidez e a credibilidade do mercado de seguros.
Todavia, o que julgo pertinente ressaltar na parte conclusiva deste ensaio é que a coexistência de um Projeto de Lei Complementar (PLC) já aprovado no âmbito da legislação de seguros e a reforma do Código Civil apresenta um desafio jurídico relevante. Embora o PLC possa trazer inovações e adequações específicas ao setor de seguros, a reforma do Código Civil, ao modificar princípios fundamentais que regem as relações contratuais e obrigacionais, pode gerar conflitos de interpretação e aplicação prática. O Código Civil, como marco geral, estabelece diretrizes amplas e aplicáveis a diferentes ramos do direito privado, enquanto o PLC, por sua natureza especializada, busca atender às peculiaridades do setor de seguros.
Esses potenciais conflitos devem ser observados com cautela, uma vez que a harmonia entre normas gerais e específicas é essencial para a segurança jurídica e previsibilidade do ordenamento. Cabe ao legislador, durante o processo de reforma, garantir que os ajustes feitos no Código Civil sejam compatíveis com a legislação específica já existente ou prestes a ser aprovada e levada à sanção presidencial, se for o caso, evitando, assim, lacunas ou sobreposições normativas que possam comprometer o equilíbrio das relações securitárias. Uma articulação coerente entre ambas as normativas são cruciais para assegurar a eficiência regulatória e a proteção adequada dos direitos dos segurados e das seguradoras.
É o que penso.
Porto Alegre/RS, 09/10/2024.
Voltaire Marenzi - Advogado e Professor
[1] Migalhas número 5.953.
[2] Angelica Carlini. Excerto do texto inserto no Informativo supra.
[3] Projeto do IBDS. Instituto Brasileiro de Direito do Seguro. Presidente Ernesto Tzrirulnik.
[4] Contrato de Seguro: Uma Lei para Todos. IBDS, maio de 2019, página 79.
[5] Artigo 77, caput do PLC nº20/2017.
[6] Excerto da matéria publicada naquele Informativo.
[7] Bis in idem.
[8] Dicionário de Seguros. Alexandre Del Fiori. Editora Lisbon. International Press, 1ª edição, abril de 2023, página 453.
[9] Voltaire Marensi. O seguro no Direito Brasileiro (Temas Atuais). Editora Síntese Ltda. Novembro/1992, página 74.
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