A Competência de uma Caixa de Ovo
Por: Analice Malheiros
Quando criança, adorava brincar recortando personagens de revistas. Pequenas gravuras de animais, figuras de desenho animado. Eu retirava a tampa de uma caixa de ovo, que rapidamente virava um ônibus, e meus recortes se tornavam passageiros. Eles iam para a escola que eu imaginava. Cuidava com tanto zelo daqueles pequenos pedaços de papel.
Confiante, eu era dona da escola. Determinava a rotina dos meus supostos alunos. Organizava suas atividades, estabelecia regras e guiava suas pequenas jornadas fictícias com a convicção de quem sabe o que faz. Nunca ninguém me disse que não poderia ser dona de uma escola. Então, hoje questiono: por que, com os anos, perdemos essa confiança? Por que passamos a questionar nossa própria capacidade?
A resposta não está apenas nas experiências que acumulamos, mas no que aprendemos a duvidar de nós mesmas. O fenômeno da síndrome da impostora, tão comum entre mulheres no ambiente de trabalho, se alimenta da crença de que não somos tão competentes quanto aparentamos. Ainda que tenhamos qualificação, experiência e habilidades para estar onde estamos, a sensação de que não pertencemos ao espaço ou que em breve alguém vai "descobrir" nossa suposta incompetência nos assombra.
Essa insegurança não surge do nada. Historicamente, as mulheres foram ensinadas a se provar o tempo todo. Desde cedo, aprendemos a minimizar nossas conquistas e a esperar validação externa. Em ambientes corporativos ou de liderança, esse comportamento se torna ainda mais evidente: quantas vezes nos pegamos pedindo desculpas antes de dar uma opinião em uma reunião? Ou recusamos uma promoção porque sentimos que ainda não estamos "prontas"?
O impacto desse sentimento vai além da autossabotagem. Ele contribui diretamente para a baixa representatividade feminina em cargos de liderança e inovação. Mulheres altamente capacitadas hesitam em se candidatar a oportunidades simplesmente por acreditarem que precisam atender 100% dos requisitos.
Então, como resgatamos a confiança que tínhamos na infância, quando não duvidávamos do nosso direito de sonhar? O primeiro passo é reconhecer a síndrome da impostora como uma narrativa imposta, e não como um reflexo da realidade. Precisamos nos lembrar de que nossa trajetória é fruto de esforço e competência, não de sorte ou de um erro de avaliação alheio.
Se um dia fui capaz de transformar uma simples caixa de ovo em uma escola inteira, por que não poderia, hoje, ser capaz de ocupar qualquer espaço que desejar?
A criança que brincava no chão da sala com seus recortes jamais questionou seu potencial. Talvez seja hora de nos reconectarmos com essa versão de nós mesmas — aquela que, sem limitações impostas, acreditava plenamente na própria capacidade de criar, liderar e transformar o mundo ao seu redor.
*Analice Malheiros é publicitária, produtora cultural e diretora de uma agência de comunicação, além de autora do livro “Bastidores”.
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