Carlos Josias: a enchente e o dano invisível
Confira artigo do advogado, sócio fundador e diretor da C Josias e Ferrer Advogados Associados, Carlos Josias Menna de Oliveira
Quando o rio deu sinal as águas foram se afastando deixando a cidade para trás.
Rastros de destruição e marcas foram abandonados nos móveis e imóveis invadidos deixando desabrigadas milhares de famílias, existências interrompidas, animais atônitos, destroços de bens e vidas arruinadas.
A invasão deixou marcas visíveis nas paredes, como lembranças e alertas de que pode voltar se não houver uma atitude, breve e drástica, comportamental.
Se os danos podem ser incalculáveis, abstratamente, pode-se dizer que, ainda assim, passíveis de ser estimados ou avaliados, especialmente se mirarmos o dever de proteção do estado, próprio da segurança a ser prestada nas cidades, ou o dever comprado em forma de risco segurável, dever que foi vendido como produto de reposição financeira do prejuízo, ainda que a vida, por exemplo, não tenha preço, e ainda que não sejam eventualmente compensatórios por alcance integral mas que serve para mitigar um pouco da perda amenizando outro pouco do debacle econômico imediato para garantir um mínimo de sobrevivência e dignidade.
Estas marcas visíveis ficaram nas paredes por onde se passa, nos prédios destruídos, nas sucatas de automóveis, nos túmulos e na história que fica contada em presenças e ausências.
São visíveis as feridas por cicatrizar.
Mas há danos que não se enxergam.
A referência de tragédia das águas que tinha o Porto-alegrense era a Enchente de 1941, até 2024 a mais devastadora que se abateu sobre a capital dos gaúchos.
Imaginava-se que nunca mais haveria algo sequer próximo daquela tragédia.
Na ocasião, o que foi um pouco mais ameno desta vez pelo avanço tecnológico e das modernas ferramentas na área da saúde, houve surtos das mais variadas enfermidades face contatos com as águas e condições sanitárias da cidade. Em meio às repercussões comportamentais decorrentes do episódio teria surgido a expressão “abobados da enchente”.
O termo usado como “meme'” da ocasião, surge atual com conotações talvez até mais sérias. Usada, a expressão para deboche de alguém tido como tolo, poderia ser entendido, hoje, também como resultado mais grave de um violento trauma psicológico.
Não me parece razoável entender que alguém que tenha perdido tudo pelo avanço das águas, pela inundação, entre bens materiais e extrapatrimonial – perda de pais, filhos, parentes, amigos, muitos com testemunho próximo da fatalidade, possa ter, dali em diante, uma vida normal.
Não é crível que alguém nestas condições possa reconstruir sua vida sem que tenha havido também invasão que deixasse marcas na sua alma, no seu interior.
As marcas não ficaram só nas paredes dos prédios e de outros bens móveis destruídos ou não. Ficaram em muitos lugares não visíveis
Quem viveu de perto a catástrofe não vai esquecer enquanto viver. Esta marca não desaparece pintando ou melhorando a fachada.
Quem foi resgatado de uma casa ou apartamento, de uma janela mais ou menos alta, e, ilustrativamente, teve que carregar seu filho na escapada, não dormirá tão cedo, se é que um dia irá dormir,
Quem foi levado pelo rio, ou presenciou alguém sendo arrastado, parente ou não, talvez nunca mais tenha paz.
Nem o cavalo Caramelo se segurará nas patas quando escutar o barulhinho da chuva que até então era tido como bom.
São as marcas invisíveis que ficaram.
Analistas e psicanalístas talvez possam avaliar e tratar este dano que não aparece tão facilmente como a marquise derrubada ou o veículo sucateado.
O sucateamento da alma se passa no íntimo, que se evite a perda total.
Estes danos não estão cobertos mas podem ser produto palpável e que possa também amenizar o sofrimento das vítimas ao menos no que concerne ao prejuízo financeiro à saúde.
Como seria isto?
Ora, até a avida pode ser avaliada como risco a ser coberto, e
existe bem mais precioso e difícil de avaliar que ela?
Bom tema para os atuários.
E para os estudiosos da psique humana.
Saudações.
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