Ensino híbrido e a pandemia do coronavírus
Por Marcelo de Cristo
A quarentena imposta pelo Covid-19, e os mais de 290 milhões de alunos impossibilitados de frequentar a escola, tem convidado educadores em todo o mundo a refletir sobre suas próprias crenças, dificuldades e resistências frente ao uso das tecnologias aplicadas à educação, e, principalmente, sobre a presente necessidade do ensino híbrido. Metodologias de ensino e aprendizagem existem na gênese de todos os processos de educação formal, mas se transformam com o tempo, à medida que enfrentamos os problemas não só da vida pessoal, como também da experiência coletiva.
Desde o início do período de quarentena, muitas ações têm sido conduzidas para que alunos não se prejudiquem, academicamente, pelo distanciamento social. As escolas têm usado aulas on-line, envio de conteúdos por aplicativo, videoconferências, e até mesmo o uso de mídias sociais, para ajudá-los durante esse período. No entanto, vale a reflexão de como a educação chegou ao ensino híbrido. Houve quem protestasse, na antiguidade remota, em favor da manutenção do ensino difuso e pautado exclusivamente na oralidade, sem que ninguém estivesse especialmente destinado à tarefa de ensinar. Contudo, a escrita surge como uma necessidade diante das transformações técnicas e do aparecimento das primeiras cidades em decorrência da produção excedente e do comércio.
Por meio dela, captou-se o tempo no espaço da matéria, permitindo o surgimento das primeiras escolas “sob as figueiras”. Houve quem desacreditasse da importância da filosofia nascente, alegando que o ensino deveria continuar voltado para a preservação das tradições e da cultura milenar. Entretanto, o desenvolvimento das cidades-estados gregas e o nascimento da democracia, provocaram mudanças significativas na vida social e nas relações humanas, levando Sócrates, Platão e Aristóteles a transformarem o curso do ensino, respectivamente, por meio da maiêutica (multiplicação de perguntas, induzindo o interlocutor na descoberta de suas próprias verdades) na defesa da educação científico-filosófica e do Organon.
Houve quem duvidasse, ainda, dos estudos sobre o conhecimento trazidos à tona pelos pensadores da Renascença, insistindo na manutenção de um ensino centrado na figura do mestre, na memorização e na correção pelo castigo. Todavia, as transformações sociais decorrentes do crescimento das manufaturas e do pensamento liberal criaram as condições para que Rousseau defendesse, em Emílio ou da educação, a centralidade do ensino na criança, a fim de que ela aprendesse a pensar, não como um processo imposto de fora para dentro, mas naturalmente, de dentro para fora, estabelecendo um marco na pedagogia contemporânea.
Houve quem desprezasse o espírito de independência e iniciativa da criança, argumentando em favor da disciplina e do domínio de conhecimentos teóricos. Porém, com o crescimento da indústria e a explosão demográfica nas cidades - impulsionadas por um novo ideal de democracia -, o conhecimento científico começa a exercer influência na educação, fazendo com que Dewey, filósofo norte-americano que influenciou educadores de várias partes do mundo, e Montessori, que foi responsável por renovar o ensino, passassem a defender a necessidade de educar as crianças por meio de metodologias ativas, considerando a escola não como preparação para a vida, mas a própria vida.
Houve quem visse loucura na introdução de processos de aprendizagem mediados por máquinas, argumentando que o contato físico com o professor seria a única forma de levar o aluno ao conhecimento. Não obstante, a globalização econômica, acompanhada da revolução tecnológica e digital, e da crescente automação das empresas, produziu profundas mudanças também no campo da educação, ensejando o surgimento da Educação a Distância (EaD).
E, ainda hoje, há quem lance sarcasmo sobre a utilização de abordagens e metodologias como o ensino híbrido, a aula invertida, a gamificação e outras formas de utilização das ferramentas digitais na educação sob pretextos diversos. Ainda assim, a pandemia do novo coronavírus trouxe consigo, como outrora, a necessidade premente de professores, escolas e gestores educacionais reavaliarem as suas próprias concepções de ensino, diante da necessidade de se colocar o aluno, mais do que nunca, de forma ativa e na centralidade do processo educativo.
Com isso, realiza-se uma verdadeira corrida para compreender como utilizar as diversas ferramentas tecnológicas existentes em favor da continuidade desse processo. Como é fácil observar, o ano de 2020 será marcado pela educação, como sendo o ano do ensino híbrido, ou seja, de um ensino que começou de modo presencial (da forma como cada qual se acostumou a fazer), mas que, por força da pandemia, nos impõe o trabalho remoto, suscitando discussões importantes sobre democratização e acesso à tecnologia e antecipando transformações educacionais que talvez levassem décadas para ocorrer.
Aproveitemos, assim, o tempo presente para educarmos a nós mesmos. A situação atual requer uma nova reflexão sobre o nosso papel como educadores das futuras gerações, o que inclui necessariamente uma reflexão sobre os métodos, os pressupostos e as ferramentas que utilizamos no dia-a-dia. A despeito de nossas resistências individuais, a necessidade de letramento digital nunca esteve tão urgente. E muitos de nós somos, neste momento, tão aprendizes quanto nossos próprios alunos.
Que lições podemos tirar de tudo isso? Deixo como provocação para vocês.
Sobre o autor
Marcelo de Cristo é pesquisador, professor, escritor e tutor de cursos de certificação de professores (CELTA) pela Universidade de Cambridge, tendo atuado na formação e desenvolvimento de professores no Brasil, América Latina e Reino Unido. Atualmente, é especialista educacional da International School. É membro fundador e ex-presidente do Chapter RN do BRAZ-TESOL (2016-2018). Tem colaborado junto ao Conselho Britânico, no Brasil, na realização de programas e criação de materiais de formação e desenvolvimento para docentes das redes pública e privada.
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