Jurisprudência ganha importância no direito do seguro
As cláusulas abertas do CDC e CC e as novidades trazidas pelo CPC abrem espaço para o protagonismo da jurisprudência nas decisões judiciais.
“Já se foi o tempo em que se entendia largamente que a jurisprudência não seria fonte do direito”, acredita o jurista Ricardo Bechara. O atual sistema vigente de cláusulas abertas do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil, segundo ele, confere maiores poderes ao juiz para ajustar a lei à evolução da sociedade. Por isso, muitas vezes, o juiz tem de criar o direito quando a lei é omissa ou lacunosa. “É sabido que a lei é tão boa quanto bons são os juízes que a aplicam”, diz.
Bechara é o organizador da “Coletânea de Jurisprudência dos Tribunais Superiores – STJ e STF. Seguros, Previdência e Capitalização”, lançada pela Confederação Nacional das Empresas (CNseg) no ano passado. A obra de mil páginas reúne 105 acórdãos do Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, incluindo súmulas, a partir de 2003, ano em entrou em vigor o Código Civil, além de um índice alfabético remissivo cruzado com todas as expressões citadas e as respectivas páginas. O jurista explica que ao organizar a obra não se deteve na coleta de jurisprudências dos tribunais estaduais, porque seriam de pouca valia, já que as mesmas podem ser mantidas ou modificadas nos tribunais superiores.
A coletânea serviu de pano de fundo para o evento intitulado “A importância da Jurisprudência no direito moderno”, promovido pela Associação Internacional de Direito do Seguro (AIDA), em novembro. Uma das debatedoras, Glória Faria, superintendente jurídica da CNseg, reconheceu que a obra surge em um momento propício, em plena vigência do novo Código de Processo Civil. Segundo ela, na tentativa de diminuir o número de recursos e de acelerar a tramitação de processos, o novo CPC criou o instituto jurídico intitulado “incidente de resolução de demandas repetitivas”, pelo qual as demandas que possuem questões jurídicas comuns são decididas de modo uniforme. Esse novo instituto, a seu ver, deverá parametrizar as decisões. “Na fase atual, a jurisprudência terá enorme papel nas decisões”, analisa.
Bechara concorda e acrescenta que a importância que o novo CPC deu aos precedentes torna a jurisprudência essencial aos advogados e para aqueles que escrevem os clausulados do seguro. Em sua opinião, a jurisprudência está se tornando mais civil law e ampliando o poder dos julgadores. Adotada no Brasil, o civil law se baseia na lei escrita, incluindo os códigos. “No civil law, mais aplicado nos países de origem latina, o direito é escrito, mas abre ao Judiciário um poder maior para que a jurisprudência possa até criar direitos”, observa. Já no common law, ao contrário, não há lei escrita e nem códigos, a não ser os precedentes jurisprudenciais, de modo que o juiz atua dentro de uma margem de maior flexibilidade e também de maior subjetividade.
A premiação de dois teóricos dos contratos no prêmio Nobel de Economia em 2016 torna o momento especial, na visão de Bechara, para os contratos de seguros. Segundo ele, entre as teorias desenvolvidas pelos ganhadores do Nobel está a de coparticipação no seguro. Ele observa que os tribunais já vêm decidindo de acordo com essa teoria, como na questão do prazo de carência para o pagamento de indenização no caso de suicídio em seguro de vida. “No acordão do 7x1, o STJ decidiu a questão com base nos critérios objetivos da carência no suicídio”, diz.
Bechara citou outra importante decisão do STJ na questão da coparticipação no seguro saúde, no caso de um empregado demitido que foi à Justiça para continuar contribuindo e permanecer no plano. A Lei 9.656, segundo o jurista, estabelece o direito ao demitido de permanecer no plano de saúde nas mesmas condições do ativo, desde que contribua. “Por isso, o demandante buscou no verbo contribuir o sentido mais amplo, entendendo que também significava coparticipar”, diz.
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) deu razão ao demandante, mas o STJ não. Segundo Bechara, o Supremo decidiu por unanimidade não apenas excluir da abrangência do verbo contribuir o instituto da coparticipação, como também invocou uma lei que alterou o entendimento do inciso IV do parágrafo 458 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), descaracterizando como salário indireto todo benefício que o empregador concedia (seguro saúde, previdência privada e seguro de vida). Segundo ele, na época, isso assustou o estipulante, gerando uma debandada. “O empregador temia arcar com ônus da contribuição previdenciária”, diz acrescentando que os acórdãos demonstram a importância da jurisprudência para o setor de seguros.
Bechara comemorou o fato de ter dado tempo de incluir na coletânea a Súmula 575, aprovada em junho do ano passado. A súmula considerou perigo concreto o simples fato de dirigir ou permitir que alguém dirija sem a devida habilitação, entendimento que também já era usado para o caso de embriaguez. “Quando o segurado deixa, por exemplo, a chave do carro em local de fácil acesso ao adolescente, não deixa de ser uma forma de permitir”, diz. Em artigo que escreveu comentando a súmula, Bechara observou que exclui o direito à indenização se o veículo for conduzido por pessoa inabilitada. “A súmula cria a presunção de um nexo causal nesse aspecto”, diz.
Surgida na Inglaterra, em plena idade média, o common law tem como ponto fundamental o poder dado ao Judiciário, privilegiando suas decisões. “O common law é um direito codificado, não escrito. Seu princípio é a equidade e o juiz é quem determina o precedente a ser julgado, fazendo a analogia”, explica Marcia Cicarelli Barbosa de Oliveira, sócia da Demarest Advogados. Segundo ela, existe um esforço profundo para mostrar essa analogia, a coincidência dos fatos e, principalmente, o que determinou a decisão. “A função do juiz é mais moderadora, cabendo às partes narrar os fatos”, diz.
Já no civil law, se parte do pressuposto de julgar todos os conflitos dentro uma obra codificada, que é o princípio do direito romano. A questão é que dificilmente a legislação é capaz de acompanhar todas as mudanças da sociedade. Por isso, Cicarelli entende que é preciso dar ao juiz maior espaço de interpretação que a simples aplicação do direito a determinado fato. No Brasil, segundo ela, que adota o civil law, a jurisprudência entra como suporte para demonstrar que em casos análogos já existem decisões.
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