A Reforma do Código Civil no Contrato de Seguro
A Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP -, que contempla e brinda seus leitores em sua parte introdutória, datada de 04/07/2004, subscrita por Diogo Leonardo Machado de Melo, Paulo Doron R. de Araújo e Judith Martins Costa, uma gaúcha de alta qualificação intelectual, junto com os dois outros jurisconsultos nominados e que conta ainda com a colaboração de inúmeros e destacados expoentes do direito, traz em seu conteúdo uma “Análise Preliminar do Anteprojeto de Reforma do Código Civil”.[1]
Minha intenção neste ensaio é procurar fazer uma resenha e uma possível análise técnica, somente no que concerne ao Direito do Seguro.[2]
Eis o introito desta parte naquela Revista:
“A disciplina dos contratos típicos funciona, para alguns setores, como marco regulatório básico a integrar e completar eventuais lacunas, assim como para dar limites e consolidar práticas e costumes seculares específicos dos agentes que se ocupam, diariamente, da circulação de bens e riquezas mediante uma determinada operação econômica. Não resta dúvida de que a disciplina do contrato de seguro no Código Civil cumpre essa função em relação ao mercado securitário brasileiro, fundamental para o funcionamento da economia”.[3]
Os comentaristas da área de seguros, identificados no rodapé da nota acima, também abrem 5 subtópicos, que tratam, respectivamente, da equiparação do dolo à culpa grave para fins securitários, do adimplemento substancial e direito à indenização securitária, do agravamento do risco que deixa de ser hipótese automática de perda de garantia, da ampliação das consequências da mora do segurador e, por último do pagamento em dinheiro que se torna forma subsidiária de liquidação da obrigação de indenizar.[4]
Em cada subitem se combate a forma, a redação e também a maneira como este instituto foi disciplinado na sobredita Reforma de nosso atual Código Civil, acentuando que se aprovada, trará a par de diversas críticas dos experts na área do texto apresentado, bastante insegurança jurídica nos termos em que se encontra redigida.
Quero trazer, à guisa de registro, um outro subitem à colação que julgo de extremada relevância. Trata-se do Seguro de Responsabilidade Civil.
Pois, segundo um ilustre corifeu francês, objeto de tradução livre, “O seguro de Responsabilidade Civil tem por objeto garantir ao segurado contra os danos que possa sofrer por um fato de sua responsabilidade”.[5]
Outrossim, nosso jurista maior, em conceito lapidar, escreveu:
“Na complexidade da vida contemporânea, cada pessoa está exposta a riscos e a ser responsabilizada por atos seus ou das pessoas cujos atos lhe determinem a responsabilidade. Tanto se pode segurar o risco de ser ofendido como o risco de se ofender”.[6]
Sobre esta modalidade securitária escrevi, mormente sobre Seguros, inclusive relativa à previdência complementar, como em artigos doutrinários, a importância e a relevância deste tema relegado quase que totalmente ao oblívio pela inclusão de apenas dois artigos no atual código Civil.
Cuida-se de focar no conteúdo da redação dos artigos 787 e 788 do nosso Código Civil.
Em meu “carro-chefe” a matéria está exposta na obra “O Seguro no Direito Brasileiro”.[7]
Não irei fazer aqui uma síntese, nem tampouco qualquer alusão ao texto propriamente dito do que discorri sobre o tema em foco.
Como já ressaltei, uma das matérias que merece ser exercitada e melhor desenvolvida pela enorme importância que teve no contrato de seguro, desde o seu início até os dias atuais, é referente ao Seguro de Responsabilidade Civil, inserto em nosso Código Civil.
O primeiro deles, vale dizer, o 787 cuida do Seguro de Responsabilidade Civil, diria eu, de modo facultativo. Ele contém, atualmente, 4 (quatro) parágrafos.
Em verdade, trata-se a rigor de uma sistemática implementada no Código Bevilaqua, inserida no Título IV – Dos Contratos -, com a mesmíssima redação do Código Reale – Dos Contratos em Geral -, aonde existe a figura da estipulação em favor de terceiro.
Diz o caput deste artigo:
“O que estipula em favor de terceiro pode exigir o cumprimento da obrigação.”[8]
O artigo 436 introduz a figura da estipulação em favor de terceiro, permitindo que uma pessoa (o estipulante) firme um contrato em seu próprio nome, mas cujo benefício seja destinado a um terceiro. Esse terceiro, apesar de não ser parte do contrato inicialmente, tem o direito de exigir o cumprimento da obrigação estipulada em seu favor.
Como disse o próprio Clovis Bevilaqua:
“A estipulação em favor de terceiro é um poderoso instrumento jurídico. O seu campo de aplicação é muito extenso. Vemo-la, particularmente, na constituição de renda, quando há um terceiro beneficiado; nos seguros de vida, etc.”[9]
A estipulação em favor de terceiro é uma exceção ao princípio da relatividade dos contratos, segundo o qual um contrato só produz efeitos entre as partes que o celebram. No entanto, o Código Civil reconhece que, em certas circunstâncias, é possível criar direitos para terceiros que não participaram da formação do contrato.
O terceiro beneficiário, ao tomar conhecimento da estipulação em seu favor, adquire o direito de exigir o cumprimento da obrigação do promitente. Esse direito é reconhecido independentemente de qualquer manifestação de vontade inicial do terceiro. Contudo, o terceiro tem a opção de recusar o benefício, caso não tenha interesse.
No seguro de uma pessoa o segurado contrata junto ao segurador, em seu próprio nome, designando um terceiro como beneficiário.
A estipulação em favor de terceiro oferece flexibilidade nas relações contratuais, permitindo que as partes possam estender os benefícios do contrato a indivíduos que não participaram da sua formação. Esse instituto é particularmente útil em situações onde se deseja proteger interesses de pessoas vulneráveis ou quando se busca uma gestão mais eficiente de recursos e responsabilidades.
O artigo 436 do Código Civil Brasileiro é um dispositivo fundamental que permite a estipulação em favor de terceiro, ampliando as possibilidades de proteção e benefício nas relações contratuais. Essa figura jurídica proporciona maior segurança permitindo que os contratos atendam a uma variedade maior de interesses e necessidades. Através deste artigo, o legislador oferece um mecanismo eficiente para que obrigações contratuais possam beneficiar terceiros, reforçando a adaptabilidade e a justiça nas relações jurídicas.
Pois bem. Volto a enfatizar. O Seguro de Responsabilidade Civil, está inserto em nosso Código Civil, em apenas dois artigos.
Em verdade, trata-se verdadeiramente de uma estipulação em favor de terceiro a teor do que preconizava o artigo 1.098 do CC/16, reproduzido no artigo 436 do atual Código Civil, que enuncia:
“O que estipula em favor de terceiro pode exigir o cumprimento da obrigação.”
Em sede doutrinária colhe-se o seguinte ensinamento:
“A estipulação em favor de terceiro decorre de uma relação obrigacional que permite um benefício ou vantagem, tutelada pelo direito, de natureza patrimonial ou não, em favor de um terceiro estranho ao contrato onde alguém estipulou e outrem se obrigou a realizar a tal prestação que atribui direito próprio a esse terceiro. As partes do contrato que gera a obrigação são: o promitente (o que se obriga a prestar) e o promissário, ou estipulante (o que atribui o direito ao terceiro). O terceiro, que não é parte no contrato, é o beneficiário”. [10]
Como escrevi algures em homenagem ao saudoso amigo o exímio processualista, Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, transcrevo apenas duas decisões por ele proferidas, quando integrante e Relator da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça:
Ementa: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. CONTRATO DE SEGURO. AÇÃO AJUIZADA PELA VÍTIMA CONTRA A SEGURADORA. LEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. ESTIPULAÇÃO EM FAVOR DE TERCEIRO. DOUTRINA E PRECEDENTES. RECURSO PROVIDO.
I – As relações jurídicas oriundas de um contrato de seguro não se encerram entre as partes contratantes, podendo atingir terceiro beneficiário, como ocorre com os seguros de vida ou de acidentes pessoais, exemplos clássicos apontados pela doutrina.
II – Nas estipulações em favor de terceiro, este pode ser pessoa futura e indeterminada, bastando que seja determinável, como no caso do seguro, em que se identifica o beneficiário no momento do sinistro.
III – O terceiro beneficiário, ainda que não tenha feito parte do contrato, tem legitimidade para ajuizar ação direta contra a seguradora, para cobrar a indenização contratual prevista em seu favor.
RESP 401718/PR – Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA - QUARTA TURMA - DJ 24.03.2003 p. 228) Ementa: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. CONTRATO DE SEGURO. LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM. BENEFICIÁRIO. ESTIPULAÇÃO EM FAVOR DE TERCEIRO. OCORRÊNCIA. ART. 1.098, CC. DOUTRINA. RECURSO PROVIDO.
I – A legitimidade para exercer o direito de ação decorre da lei e depende, em regra, da titularidade de um direito, do interesse juridicamente protegido, conforme a relação jurídica de direito material existente entre as partes celebrantes.
II – As relações jurídicas oriundas de um contrato de seguro não se encerram entre as partes contratantes, podendo atingir terceiro beneficiário, como ocorre com os seguros de vida ou de acidentes pessoais, exemplos clássicos apontados pela doutrina.
III – Nas estipulações em favor de terceiro, este pode ser pessoa futura e indeterminada, bastando que seja determinável, como no caso do seguro, em que se identifica o beneficiário no momento do sinistro.
IV – O terceiro beneficiário, ainda que não tenha feito parte do contrato, tem legitimidade para ajuizar ação direta contra a seguradora, para cobrar a indenização contratual prevista em seu favor.
V – Tendo falecido no acidente o terceiro beneficiário, legitimados ativos ad causam, no caso, os seus pais, em face da ordem da vocação hereditária. RESP 257880/RJ Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA QUARTA TURMA DJ 07.10.2002 p. 261 RSTJ vol. 168 s/ numeração de página.
Diante da doutrina e da jurisprudência pacificado se dessume que no contexto do Seguro de Responsabilidade Civil, a estipulação do terceiro refere-se ao direito de uma terceira parte ser diretamente beneficiada pela apólice de seguro. Em certos casos, haverá uma indeterminação do beneficiário que será determinado quando houver a liquidação do sinistro a par do pagamento da indenização contratada, consoante retratado no corpo dos julgados supra mencionados.
No meu livro “O Contrato de Seguro à Luz do Novo Código Civil” citei eminentes doutrinadores alienígenas, um deles conhecido jurista germânico e outro de nacionalidade italiana, respectivamente, assim como trouxe à colação artigo com correspondência da matéria no Code des Assurances, vale dizer, o art. L. 124-3.
O segundo artigo sob comento do atual Código Civil, isto é, o 788 trata dos Seguros de Responsabilidade legalmente obrigatórios, que em seu parágrafo único, textualiza:
“Demandado em ação direta pela vítima do dano, o segurador não poderá opor a exceção de contrato não cumprido pelo segurado, sem promover a citação deste para integrar o contraditório”.
A primeira constatação que faço é de que, de fato, a redação do atual Código Civil é acrescida no texto legal no artigo que trata do Seguro de Responsabilidade Civil facultativo, posto que é mais clara e objetiva, mormente quanto ao detalhamento explicitado no conteúdo do artigo 787 em sua moldura legal.
Uma outra, diz respeito a hermenêutica dos artigos referenciados.
Isto porque, o atual parágrafo único do artigo 788 já prevê a possibilidade da ação direta pela vítima do dano no que concerne aos seguros de responsabilidade legalmente obrigatórios, a teor da citação do artigo acima enunciado.
De fato. Ambos os artigos embora mais minudentes em suas respectivas redações, na reforma do atual CC, salvo engano, já estão também previstos em somente dois artigos que deveriam ter sido, de lege ferenda, bem mais esclarecedores, mais detalhados e adequados ao tema, data vênia.
Impende sublinhar que no PLC/ 2017 apresentado pelo IBDS, já aprovado pelo Senado da República existem pelo menos 15 artigos – Do Seguro de Responsabilidade Civil -, que cuidam de minudenciar o regramento deste tipo securitário, aliás, sempre de alta relevância na seara securitária.
Deveras. Este instituto jurídico deve receber de parte do legislador uma normatização mais escorreita e detalhada, além de uma melhor tipificação legal para contemplar uma melhor proteção a todos os que se valem desta cobertura desde sua implantação no mercado, até os dias de hoje.
Aproveito para lançar, ao azo, neste ensaio o que foi também escrito na Revista do IASP, quando se cuidou do Direito das Sucessões, em coautoria de renomadas juristas Mairan Gonçalves Maia Junior, Karime Costalunha e Silvia Felipe Marzagão, respectivamente, quando em matéria correlata ao contrato de seguro registraram:
“Também o § 2º do art. 1.816 veicula indevidas sanções aos herdeiros. Inicialmente observe-se não guardar relação com o caput, não atendendo, por isso, à melhor técnica legislativa: prevê que o herdeiro perderá direito à percepção de benefício previdenciário e ao recebimento de seguro de vida, os quais possuem causas jurídicas distintas e próprias e não guardam relação com o direito hereditário, pois não integram a herança”. Sic.[11]
No contrato de seguro, trata-se de um direito próprio, diferente do direito à herança regulado pelo direito das sucessões.
Em ligeira síntese, a meu sentir, a Reforma do Código Civil, no que tange ao Contrato de Seguro, revela-se dissociada dos princípios fundamentais que norteiam o bom direito. As alterações introduzidas não apenas desconsideram a complexidade e a evolução das relações contratuais modernas, mas também comprometem a segurança jurídica e a equidade entre as partes contratantes.
Dessa forma, é imperioso que se repense e reavalie tais modificações, com o intuito de alinhar o ordenamento jurídico às demandas e realidades contemporâneas, garantindo, assim, a justa aplicação do direito e a proteção efetiva dos interesses envolvidos.
Ademais, é bom registar que o recesso no legislativo está prestes a findar.
É o que penso.
Porto Alegre, 28 de julho de 2024.
Voltaire Marenzi - Advogado e Professor
[1] Revista do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo, volume 38.1- Ano 27.
[2] Revista citada, parte 3. Pedro Guilherme Gonçalves de Souza, Rodolfo Mazzini e Felipe Bastos, páginas 42/48.
[3] Ibidem, página 43.
[4] Páginas 43 a 48 daquela Revista.
[5] Mazeaud Tunc. Responsabilidad Civil, volume II. Ediciones Jurídicas Europa-América. Buenos Aires, 1963, página 172.
[6] Pontes de Miranda. Tratado de Direito privado, volume 46, p´ginas 47/48. Editor Borsoi. Rio de janeiro, 1.964.
[7] Voltaire Marensi. Obra supra citada, 9ª edição. Lumen Juris/Editora, páginas 322 a 342.
[8] Caput do artigo 436 do atual Código Civil.
[9] Clovis Bevilaqua, volume 4, quarta edição. Livraria Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1.934, página 272.
[10] Nery, Nelson e Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. São Paulo. Thomson Reuters Brasil, 2019.
[11] Revista do IASP, páginas 80/81.
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