O pagamento de indenização securitária não se condiciona à previa quitação de veículo alienado fiduciariamente
Não posso me furtar de discorrer sobre o que foi decidido pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 04/10/22, através de um Recurso Especial, sob número 1.903.931/DF, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, que entendeu ser devida indenização securitária no caso de perda total de seguro automóvel com gravame de alienação fiduciária.
Ficou constatado nos autos que os prêmios foram pagos pelo segurado, quando houve perda total de veículo que apresentava o ônus de alienação fiduciária, aliás, fruto de pleno conhecimento da seguradora.
O ponto fulcral da questio juris se delimitou em determinar a abusividade da conduta da seguradora, que teria negado o pagamento da indenização securitária, sob o singelo argumento de que:
“(..) em se tratando de indenização por perda total de veículo objeto de contrato de financiamento com garantia de alienação fiduciária, o pagamento está condicionado à satisfação do contrato de financiamento” exigindo, ainda, apresentação da carta de quitação do veículo, de modo que o salvado deve ser transferido à seguradora livre e desembaraçado de quaisquer ônus”.[1]
Aí, data vênia, reside, a meu sentir, o primeiro erro capital da seguradora.
Uma coisa é o instituto da alienação fiduciária previsto no Decreto-Lei nº 911, de 1º de outubro de 1966, com suas alterações, cujo conteúdo expresso de seu artigo 66 fala por si só:
“Art.66. A Alienação fiduciária em garantia transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direto e depositário com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal”.[2]
Da leitura do dispositivo acima transcrito, se dessume que a propriedade – domínio -, do bem, ou a posse direta é do financiado e a propriedade resolúvel, ou a posse indireta do agente financeiro.
Atento a esse mecanismo ao seu tempo inovador gerando no comércio o incremento de vendas de um grande número de veículos automotores, não passou desapercebido por um dos criadores desse mecanismo jurídico consolidado na Lei de 1.966, mestre Orlando Gomes, aliás, sem dispositivo correspondente no anterior Código Civil, tanto que o legislador civilista de 2001, supriu essa lacuna ao preceituar:
“Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor.”[3]
A propriedade fica resolvida, ou seja, se consolida na pessoa do credor no caso de inadimplemento da obrigação oportunizando o implemento da condição ou pelo advento do termo por seu descumprimento podendo, destarte, reivindicar a coisa do poder de quem a possua ou detenha.
Vale sublinhar: se não houver o pagamento do financiamento por parte do adquirente do bem móvel – um automóvel como é a hipótese em comento – pode volver à propriedade ao agente financeiro em sua plenitude passando este a ter a posse direta e a propriedade do bem.[4]
Ademais, como muito bem pontuou o Ministro Relator do recurso especial supra identificado, saliente-se:
“Nos termos dos arts. 786 do Código Civil e 126, parágrafo único, do Código de Trânsito Brasileiro (CTB), quando a seguradora paga a indenização securitária, sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, em direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano”. Sic.[5]
Na passagem de seu voto, ainda ressalta:
“Após o pagamento da indenização, é dever do segurado proceder à entrega da documentação do veículo, possibilitando a transferência do salvado à seguradora, desembaraçado de quaisquer ônus, o que evita o enriquecimento ilícito”. Sic.[6]
Valorizando a sentença de piso com transcrição que interessa no ponto em tela, reproduziu o relator a decisão lançada por ocasião dos embargos de declaração manejados na ocasião pela seguradora, verbis:
“Em suma, a indenização securitária deve ser paga, independentemente da entrega do veículo livre e desembaraçado. Por outro lado, permanece o dever de o segurado entregar os salvados livres e desembaraçados à seguradora. Evidentemente, enquanto o bem não for entregue, todos os tributos e débitos que se relacionam à posse do veículo permanecem sob a responsabilidade do segurado. Apenas com a efetiva entrega dos salvados livres e desembaraçados, passará a seguradora a responder pelas obrigações decorrentes da posse do bem”.[7]
Data vênia dos bem lançados fundamentos do decisum nos autos dos embargos de declaração, vou um pouco mais adiante ao dizer que a seguradora com o recebimento dos salvados livres de quaisquer ônus, passará a responder pelas obrigações oriundas não só da posse, mas também da propriedade plena.
É verdade que hoje o direito de propriedade sofre limitações de tal modo que o proprietário não pode se utilizar como dizia o direito romano, ad sideras ad inferos (das estrelas, até o inferno), mas seu direito está garantido, quer através de nossa Constituição Federal, quer por nosso Código Civil.[8]
De outro giro, “salvados” de veículos são bens resgatados de um sinistro, parcial ou totalmente danificados, mas que ainda possuem valor econômico. Podem ser considerados salvados os veículos sinistrados provenientes de: colisão, roubo/furto, incêndio, enchente/alagamento e sinistrados em transporte.[9]
Outro tema abordado no recurso especial em foco, foi quanto a definição da indenização securitária decorrente de contrato de seguro de automóvel.
A decisão foi lastreada em sintonia com as instâncias ordinárias no sentido de que “a quantia a ser indenizada pela requerida refere-se ao valor do veículo com base na tabela FIPE, na data da ocorrência do sinistro”.[10]
Por fim, no que tange ao pedido da condenação por danos morais requerido pelo segurado se entendeu no caso sub judice que como o dissídio pretoriano não foi demonstrado, vale dizer, a questão atinente aos danos morais não pode ser apreciada ao sabor de precedentes da Corte.[11]
Do que se relatou objeto destes comentários é de que o princípio indenitário em sede securitária “tem o sentido de que no seguro de danos a indenização não pode ser objeto de enriquecimento ou especulação”.[12]
Enfim e por fim. Todo o julgamento em sede infraconstitucional como é aquele emanado do Superior Tribunal de Justiça, que, merece, a juízo modesto do comentarista, não só o respeito de que uma decisão deve ser cumprida, mas também os encômios do acerto e do acurado raciocínio do Julgador que faz no decurso de seu voto um entendimento que melhor se coaduna com a doutrina securitária.
É o que penso.
Porto Alegre, 09/11/22
Voltaire Marensi - Advogado e Professor
[1] Terceiro parágrafo do item 2 do voto do Ministro Relator.
[2] Alteração introduzida pela lei número 10.931, de 2004.
[3] Artigo 1.361 do Código Civil.
[4] Exegese dos artigos 1.359 e 127 do Código Civil.
[5] Parte inicial do voto do Ministro Relator, item 2.
[6] Ibidem.
[7] Destaque da sentença lançada no final do item 3, do voto do Ministro Relator.
[8] Artigo 5º, inciso XX e artigo 1.231 do Código Civil.
[9] https://seguros.mapfre.com.br
[10] Item 4 do voto do Ministro Relator, in fine.
[11]Bis in idem.
[12] Maurício salomoni Gravina. Princípios Jurídicos do Contrato de Seguro. Princípio Indenizatório, 2ª Edição. Escola Nacional de Seguros, março de 2018, página 81.
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