Jet lag Social: entenda como a pandemia da Covid-19 alterou o ritmo do relógio biológico
Especialista explica como se preparar para a volta a rotina após dois anos de distanciamento
A pandemia do coronavírus mudou abruptamente a rotina da população mundial, causando um jet lag social. O termo indica mudanças bruscas, que pegam o organismo de surpresa, causando uma dessincronização entre o horário convencional e o ideal para cada pessoa. Comum para explicar o distúrbio temporário das funções biológicas causado por longas viagens, foi potencializado após vivenciarmos dois anos de uma situação pandêmica de saúde, sem precedentes.
No Brasil, um levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) indicou que cerca de 8,2 milhões de brasileiros trabalharam em regime de home office durante a pandemia¹. Essa mudança de rotina trouxe benefícios como diminuição da circulação de diversos vírus – a exemplo do próprio coronavírus – e, consequentemente, uma menor incidência de doenças respiratórias.
Mas, e nosso organismo como um todo, como ficou? De acordo com Primo Paganini, médico psiquiatra e consultor de Neurociências, CRM 82751-SP, o nosso corpo sofreu, em maior ou menor proporção, o impacto dessa mudança. “O relógio biológico de todo indivíduo é ritmado pelo ciclo circadiano, que entre outras funções, rege as atividades diárias do corpo durante as 24 horas do dia, sincronizando-as ao período claro (dia) e do período escuro (noite). É esse ciclo que nos ‘alerta’ a hora que devemos acordar, nos alimentar, estar ativos, relaxar, dormir, entre outros. Quando mudamos nossa rotina de forma repentina, hormônios que regulam o ciclo circadiano, como a melatonina, podem sofrer um desequilíbrio e impactar diretamente a qualidade de vida, produtividade e, a longo prazo, a saúde física e mental”, explica.
Para entender no detalhe os principais impactos e como driblar as consequências do jet lag social, garantindo uma volta saudável a antiga nova rotina, o especialista destacou alguns pontos. Confira!
Sono irregular
De acordo com pesquisa, um terço da população mundial sofre com insônia²,³. Durante a pandemia esse número subiu afetando 70% dos brasileiros⁴. Para o dr. Primo a interrupção da antiga rotina e mudança de ambiente têm parte de responsabilidade na ausência ou irregularidade do sono, uma vez que a mudança inesperada pode ter reduzido a liberação de melatonina, o hormônio natural do sono. “Além disso, é comum que os indivíduos passem noites em claro ou tenham sentido sono na hora de acordar, já que seu corpo também perdeu temporariamente as referências externas e teve que se adaptar aos novos estímulos que o auxiliaram na percepção dos novos horários e rotina”, comenta.
Metabolismo desregulado
As mudanças no ciclo circadiano também podem ter interferido os processos metabólicos e endócrinos, reduzindo a liberação de hormônios como cortisol, melatonina e do crescimento. Essa baixa hormonal geralmente deixa o indivíduo susceptível à obesidade, diabetes, entre outras doenças⁵. “Muitas pessoas, durante o período em que trabalharam à distância, não faziam pausas para tomar café da manhã, almoçar ou lanchar, como faziam habitualmente no trabalho, essa falta de rotina além de mudar a forma como os hormônios são liberados, pode provocar distúrbios alimentares importantes que levam tempo para serem corrigidos”, explica.
Alteração na microbiota intestinal
Outra função biológica que pode ser diretamente impactada pela irregularidade do ciclo circadiano é a microbiota intestinal. Uma vez com o ciclo alterado, o indivíduo pode ter prejuízos na absorção de nutriente, equilíbrio do metabolismo e respostas imunes. Um estudo do Instituto Weizmann de Ciência, publicado pela revista Cell, analisou se a alteração do ciclo circadiano poderia modificar a composição da microbiota intestinal e percebeu que diversas espécies de bactérias que compõem o nosso intestino se guiam pelo clico claro-escuro. O estudo ainda constatou que o jet lag seria capaz de alterar as secreções produzidas por essas bactérias, o que poderia favorecer o surgimento de condições como a disbiose intestinal.
Durante a pesquisa, os indivíduos que realizavam longas viagens de avião, interrompendo assim o seu ciclo de sono, tiveram um aumento considerável de bactérias Firmicutes, que está associada a maior propensão de desenvolvimento de obesidade e doenças metabólicas, como diabetes⁵.
Fadiga durante as atividades diárias
A sonolência e cansaço causados por alterações circadiana e, consequentemente, privação de sono têm sido considerados muitas vezes como causa de perda de produtividade, irritabilidade e falhas humanas cognitivas e de execução nas atividades, que podem levar à acidentes. Com a volta gradativa à rotina presencial de trabalho, que implica também em uma maior de mobilidade urbana e uma nova adaptação do nosso corpo à rotina antiga, precisamos minimizar os impactos no nosso organismo já tentando nos ajustar aos antigos hábitos. Com isso o psiquiatra recomenda que:
- Deitar-se mais cedo, para o corpo ir se acalmando aos poucos;
- Praticar atividade física para melhorar a qualidade do sono. Mas, atenção, o exercício quando realizado muito tarde pode aumentar a produção de hormônios como o cortisol, o que dificulta a pegar no sono;
- Investir tempo e qualidade ao sono para manter o bom funcionamento do organismo. Para um descanso adequado, limite o acesso às luzes artificiais como lâmpadas, telas de celulares, computadores e televisão;
- A luz está extremamente ligada à produção de melatonina. No quarto, opte por uma iluminação que imita a luz natural;
“Todas essas iniciativas podem ajudar muito a ajustar o seu sono, mas se sentir que a insônia é frequente e que pode estar com o relógio biológico desregulado, procure ajuda médica”, alerta o especialista.
Referências consultadas
1. O trabalho remoto e a pandemia: o que a pnad covid- 19 nos mostrou. https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/conjuntura/210201_nota_teletrabalho_ii.pdf (acessado em novembro de 2021)
2. Benca RM. Diagnosis and treatment of chronic insomnia: a review. Psychiatr Serv. 2005;56(3):332-43.
3. Buysse DJ. Insomnia. JAMA. 2013;309(7):706-16. OUT/2021
4. Instituto do Sono. https://pebmed.com.br/dificuldade-de-dormir-afeta-70-dos-brasileiros-na-pandemia-indica-pesquisa/ (acessado em novembro de 2021)
5. Christoph A. Thaiss, David Zeevi, Maavan Levy, Zamir Halpern, Eran Segal, Eran Elinav O controle trans-reinado das oscilações diurnas da microbiota promove a homeostase metabólica https://www.cell.com/fulltext/S0092-8674(14)01236-7. (acessado em novembro de 2021)
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