Bagehot, os bancos centrais e a intromissão estatal na distribuição de lucros
*Por Marcelo Godke e Joseph A. McCahery
Em 1873, Walter Bagehot, fundador da revista The Economist, publicou a clássica obra chamada de Lombard Street. Nela, o autor descreve o funcionamento do mercado bancário londrino e faz apontamentos importantes sobre as funções que um banco central deve ter. De maneira geral, ele se posiciona contra interferências constantes, por entender ser comércio bancário uma atividade empresarial como qualquer outra.
Defende, contudo, contrariando o pensamento econômico prevalecente, que o banco central deveria intervir em momentos de pânico e iliquidez. Para ele, o banco central deveria usar suas reservas para emprestar livre e vigorosamente a outros bancos, de maneira a debelar o pânico por meio do aumento da liquidez. Ademais, as taxas de juros cobradas em tais empréstimos deveriam ser elevadas, para atraírem somente os bancos que necessitassem. Por fim, os empréstimos deveriam ser concedidos na proporção das garantias eventualmente apresentadas e enquanto houvesse demanda por dinheiro, o que protegeria o patrimônio do banco central e enviaria importante sinal ao mercado de que existe liquidez para as boas instituições financeiras. Bagehot, de maneira brilhante, vislumbrou sistema para lidar com aquilo que hoje se chama de moral hazard.
Muita coisa mudou desde então, com o abandono gradual da ideia de laissez-faire e adoção paulatina de regimes regulados e controlados. Os bancos centrais passaram a assumir posicionamento mais ativo e lhes foram concedidos poderes cada vez maiores. Isso decorre da necessidade de mitigar os efeitos causados por constantes crises bancárias e da complexidade cada vez maior vista nos mercados financeiros. O abrandamento dos controles de capital nas décadas de 1970 e 1980; a constante evolução da tecnologia da informação voltada para os mercados financeiros; a internacionalização dos fluxos financeiros; e o desenvolvimento de produtos cada vez complexos são apenas alguns dos motivadores da ampliação dos poderes dos bancos centrais.
Tal movimento pode ser mais facilmente notado a partir da crise internacional desencadeada em 2007. Naquele momento, autoridades financeiras foram chamadas a intervir para evitar a quebra de bancos de todos os portes (apesar de vários terem sucumbido, como se viu nos casos de Lehman Brothers e de Bear Stearns).
Neste tipo movimento, é comum haver recrudescimento das regras prudenciais. Mas também é corriqueiro que os bancos centrais adotem fórmula parecida à sugerida por Bagehot para trazer liquidez instantânea, com a concessão de empréstimo às instituições financeiras em dificuldades momentâneas. Contudo, já que a fórmula hodiernamente adotada não é exatamente a preconizada por Bagehot (por não se cobrar juros elevados ou por não se exigir a apresentação de garantias sólidas), a possibilidade de emergir o moral hazard aumenta. O movimento visto nos Estados Unidos nos anos de 2007 e 2008 para se resgatar bancos em apuros foi no sentido de fornecer ampla liquidez a baixo custo, o que também ajudou a salvar o mercado do colapso total. Contudo, o bailout das instituições financeiras custou muito aos contribuintes e aos cofres públicos americanos.
Não obstante isso, observou-se movimento peculiar: apesar de a economia americana estar, naquele momento, em grandes dificuldades, executivos de instituições financeiras receberam elevadas remunerações, notadamente na forma de bônus. Parte do dinheiro público (que deveria ter ido parar nos caixas de empresas na forma de empréstimos concedidos pelos bancos resgatados) foi para os bolsos de executivos do mercado financeiro.
Note-se que a remuneração de executivos bancários deve ser algo privadamente negociada e a intervenção estatal, via-de-regra, será prejudicial ao bom andamento dos negócios empresariais. Mas a situação vista nos Estados Unidos foi objeto de críticas pelo fato de o dinheiro pago na forma de bônus ser, em parte, de origem pública. Para que se evite tal problema, estaria, em princípio, justificada a intervenção estatal, notadamente por meio de regras prudenciais que proíbam o pagamento deste tipo de remuneração com dinheiro de origem pública.
Ciente disso e em meio à atual crise sanitária, autoridades financeiras brasileiras resolveram promover liquidez (em parte por meio da concessão de crédito e a instituições financeiras), seguindo parcialmente os ensinamentos de Bagehot. Mas também foram tomados cuidados para se evitar o problema de redirecionamento indesejado de recursos públicos a executivos e controladores de bancos brasileiros.
Neste sentido, o Conselho Monetário Nacional editou a Resolução nº 4.797/20, para impor limites temporários à distribuição de resultados, ao aumento da remuneração de administradores, e à recompra de ações, a serem observados por instituições financeiras brasileiras.
À primeira vista, tais medidas parecem adequadas ao atual quadro brasileiro. Contudo, ao se observar melhor a Resolução nº 4.797/20, percebe-se que ela atinge não só os bancos que poderão receber recursos públicos, mas todas as instituições financeiras brasileiras.
Ao que parece, a abrangência da medida pode ser vista como exagerada, por não levar em consideração a situação de cada banco. A profilaxia pode não atingir os resultados almejados, já que a impossibilidade de remunerar adequadamente executivos bancários de instituições financeiras saudáveis tende a ser prejudicial ao mercado com um todo. O tempo dirá.
Marcelo Godke é sócio de Godke advogados, professor do CEU Law School, do Insper Instituto de Ensino e Pesquisa e da Fundação Armando Álvares Penteado, e associado ao Tilburg Law ﹠ Economics Center.
Joseph McCahery é professor da Tilburg Law School e associado ao Tilburg Law ﹠ Economics Center.
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