Estado e município são condenados por enchente em Porto Alegre
Artigo é do advogado da Agrifoglio Vianna Advogados Associados, Dr. Marcelo Camargo.
Se você se surpreendeu com esse título, pode ter sido influenciado por manchetes recentes que destacaram “decisões judiciais” isentando o poder público dos danos causados pela enchente de maio de 2024. No entanto, essa interpretação não traduz com fidelidade a jurisprudência dominante no Estado do Rio Grande do Sul, especialmente no âmbito da Justiça Estadual.
A respeito da responsabilidade dos entes estatais pela enchente de 2024 especialmente em Porto Alegre e região metropolitana, três aspectos precisam ser considerados: o jurídico, o financeiro e o moral.
Quanto ao jurídico, para entender a atual controvérsia, é necessário voltar ao ano de 1941, quando o rio Guaíba subiu 4,77 metros, provocando uma das maiores tragédias naturais da história de Porto Alegre. A partir daquele episódio, foi projetado por uma empresa alemã na década de 1950 o Sistema de Proteção Contra Cheias. Executado nas décadas de 1960 e 1970, esse complexo sistema conta com 68 km de diques, 14 comportas, 23 casas de bombas, além de canais, muros e condutos forçados, e tem capacidade para suportar elevação do nível do rio até 6 metros (cota 6).
Durante décadas, o sistema funcionou como barreira eficaz. Contudo, como qualquer estrutura física, exige manutenção e modernização. A omissão nesse ponto é o cerne das condenações que vêm sendo proferidas pela Justiça Estadual, tanto que em 2020 foi emitido o Incidente de Uniformização de Jurisprudência nº 71008591331, das Turmas Recursais da Fazenda Pública, definindo a responsabilidade da Prefeitura e Estado por alagamentos.
Justamente por esta razão, a jurisprudência tem condenado Estado e Município pelos danos decorrentes de alagamentos ocorridos nos anos de 2021, 2022 e 2023, pois todos causados por falha no sistema de bombeamento, tal como falta de energia e manutenção.
Diante deste histórico recorrente, seria possível o afastamento da responsabilidade de Estado e Município por “força maior” na enchente de 2024?
A nosso ver não, pois a cota máxima verificada em maio de 2024 ficou abaixo dos 6,00 metros.
Então como a água entrou na cidade? Pelas falhas nas casas de bombas e comportas, mesma razão que levou à condenação de Município e Estado nos episódios dos anos anteriores.
Não há excludente de força maior neste episódio de 2024. Não é porque o resultado foi catastrófico que a causa foi a excepcionalidade das chuvas. Se o seu banheiro inunda, a culpa será do chuveiro ou do ralo entupido?
Assim, cabe a responsabilização civil do Estado e dos Municípios que de alguma forma falharam nos seus sistemas de proteção de enchentes.
Há tempos vem se desenhando uma reconfiguração do instituto da reparação dos danos, que passa a ter um caráter de proteção coletiva e não só a função de repor o patrimônio individual daquele que sofreu uma perda.
Se esta é a atual função da responsabilidade civil, é justo considerar na sua aplicação os potenciais efeitos educadores que a responsabilização daqueles que tinham a possibilidade e a obrigação de evitar e minorar as consequências do alagamento, pode gerar para o futuro. Há um caráter pedagógico em demandar contra o Estado e Município.
Daqui para frente, talvez o gestor perceba que o custo para reparar os prejuízos de um alagamento é muito maior do que o investimento necessário para a correção de pelo menos algumas das 23 casas de bombas que protegem Porto Alegre.
Medidas simples como a elevação dos quadros elétricos das estações de bombeamento para um nível acima da linha de inundação evitaria a paralização das bombas no momento mais crucial. A instalação e manutenção de geradores de energia no topo das estruturas físicas daria autonomia energética para a continuidade do bombeamento mesmo em caso de corte do fornecimento de energia externa.
Neste cenário, a pergunta que fica é: não foi financeiramente possível, por 50 anos, fazer a manutenção mínima do sistema de proteção de cheias de Porto Alegre?
Justamente aqui reside o caráter moral a respeito da pretensão reparatória.
Todos aqueles que tiveram danos tem o direito sagrado de pretender a reparação. Aqueles que não tiveram danos diretos, tem o direito de não sofrerem danos semelhantes no futuro e a responsabilização civil do Estado por omissão é um importante mecanismo para garantir ambas as premissas.
Talvez seja necessário cortar na própria carne para finalmente aprendermos, sociedade, gestores públicos e Judiciário, que as responsabilidades não podem ser ignoradas, nem antes e nem depois do catastrófico episódio. O caráter pedagógico da responsabilidade civil se encarregará de gerar para um futuro próximo um novo paradigma, uma nova e clara noção de omissão e consequência. É a única forma de garantir uma efetiva conscientização coletiva, possibilitando a coesa evolução enquanto sociedade.
O mercado segurador também foi protagonista no processo de reconstrução, pagando mais de R$ 6 bilhões em indenizações até o final de 2024, conforme a CNseg. No entanto, para garantir a sustentabilidade do mutualismo e do próprio seguro, é essencial o direito de sub-rogação — ou seja, a possibilidade de a seguradora buscar o ressarcimento do causador do dano após cumprir sua obrigação com o segurado. Isso protege o fundo comum que sustenta o seguro, amplia a oferta e fortalece a confiança na proteção securitária diante de eventos futuros.
Portanto, responsabilizar o Estado e o Município pelos danos da enchente de 2024 não é apenas um ato de justiça com as vítimas. É também uma ação preventiva e educativa. É lembrar aos gestores públicos que o custo da omissão é maior do que o investimento em manutenção. É garantir à sociedade o direito de viver em uma cidade preparada para eventos extremos, que, infelizmente, tendem a se repetir com frequência crescente.
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