O Seguro de Responsabilidade Civil na Reforma do Código Civil e Leis Extravagantes
Um dos temas que merece ser exercitado e melhor explicitado pela importância que teve no contrato de seguro, desde o seu início até os dias atuais, é referente ao seguro de responsabilidade civil, inserto em nosso Código Civil, em apenas dois artigos.[1]
O primeiro deles, vale dizer, o 787 cuida do seguro de responsabilidade civil de modo facultativo. Contém, atualmente, 4 (quatro) parágrafos.
Em verdade, trata-se de uma estipulação em favor de terceiro a teor do que preconizava o artigo 1.098 do CC/16, reproduzido no artigo 436 do atual Código Civil, que enuncia:
“O que estipula em favor de terceiro pode exigir o cumprimento da obrigação.”
Em sede doutrinária colhe-se o seguinte ensinamento:
“A estipulação em favor de terceiro decorre de uma relação obrigacional que permite um benefício ou vantagem, tutelada pelo direito, de natureza patrimonial ou não, em favor de um terceiro estranho ao contrato onde alguém estipulou e outrem se obrigou a realizar a tal prestação que atribui direito próprio a esse terceiro. As partes do contrato que gera a obrigação são: o promitente (o que se obriga a prestar) e o promissário, ou estipulante (o que atribui o direito ao terceiro). O terceiro, que não é parte no contrato, é o beneficiário.[2]
Homenageando meu saudoso amigo o exímio processualista Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira transcrevo duas decisões proferidas por ele, quando relator na Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça;
Ementa: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. CONTRATO DE SEGURO. AÇÃO AJUIZADA PELA VÍTIMA CONTRA A SEGURADORA. LEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. ESTIPULAÇÃO EM FAVOR DE TERCEIRO. DOUTRINA E PRECEDENTES. RECURSO PROVIDO.
I – As relações jurídicas oriundas de um contrato de seguro não se encerram entre as partes contratantes, podendo atingir terceiro beneficiário, como ocorre com os seguros de vida ou de acidentes pessoais, exemplos clássicos apontados pela doutrina.
II – Nas estipulações em favor de terceiro, este pode ser pessoa futura e indeterminada, bastando que seja determinável, como no caso do seguro, em que se identifica o beneficiário no momento do sinistro.
III – O terceiro beneficiário, ainda que não tenha feito parte do contrato, tem legitimidade para ajuizar ação direta contra a seguradora, para cobrar a indenização contratual prevista em seu favor.
RESP 401718/PR – Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA - QUARTA TURMA - DJ 24.03.2003 p. 228) Ementa: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. CONTRATO DE SEGURO. LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM. BENEFICIÁRIO. ESTIPULAÇÃO EM FAVOR DE TERCEIRO. OCORRÊNCIA. ART. 1.098, CC. DOUTRINA. RECURSO PROVIDO.
I – A legitimidade para exercer o direito de ação decorre da lei e depende, em regra, da titularidade de um direito, do interesse juridicamente protegido, conforme a relação jurídica de direito material existente entre as partes celebrantes.
II – As relações jurídicas oriundas de um contrato de seguro não se encerram entre as partes contratantes, podendo atingir terceiro beneficiário, como ocorre com os seguros de vida ou de acidentes pessoais, exemplos clássicos apontados pela doutrina.
III – Nas estipulações em favor de terceiro, este pode ser pessoa futura e indeterminada, bastando que seja determinável, como no caso do seguro, em que se identifica o beneficiário no momento do sinistro.
IV – O terceiro beneficiário, ainda que não tenha feito parte do contrato, tem legitimidade para ajuizar ação direta contra a seguradora, para cobrar a indenização contratual prevista em seu favor.
V – Tendo falecido no acidente o terceiro beneficiário, legitimados ativos ad causam, no caso, os seus pais, em face da ordem da vocação hereditária. RESP 257880/RJ Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA QUARTA TURMA DJ 07.10.2002 p. 261 RSTJ vol. 168 s/ numeração de página.[3]
No meu livro O Contrato de Seguro à Luz do Novo Código Civil citei eminentes doutrinadores alienígenas, um alemão e o outro italiano, respectivamente, assim como trouxe à colação artigo com correspondência da matéria no Code des Assurances, vale dizer, art. L. 124-3.[4]
O segundo artigo sob comento do atual CC, isto é, o 788 trata dos seguros de responsabilidade legalmente obrigatórios, que em seu parágrafo único, textualiza:
“Demandado em ação direta pela vítima do dano, o segurador não poderá opor a exceção de contrato não cumprido pelo segurado, sem promover a citação deste para integrar o contraditório”. [5]
A primeira constatação que faço é de que, de fato, a nova redação acrescida no texto legal do artigo que trata do seguro de responsabilidade civil facultativo é mais clara e objetiva, mormente quanto ao detalhamento explicitado no conteúdo do artigo 787 com sua novel moldura legal.
Uma outra, diz respeito a hermenêutica dos artigos referenciados.
Isto porque o atual parágrafo único do artigo 788 já prevê a possibilidade da ação direta pela vítima do dano no que concerne aos seguros de responsabilidade legalmente obrigatórios, a teor da citação enunciada em seu caput, acima transcrita.
De fato. Ambos os artigos embora mais minudentes em suas respectivas redações, na reforma do CC, já estão previstos em somente dois artigos que deveriam ter sido de lege ferenda, bem mais extensos e mais adequados ao tema, data vênia.
Não vou cansar o leitor com excertos de inúmeros artigos que escrevi sobre tema tão relevante e denso como sói acontecer com essa modalidade securitária.[6]
Só à guisa de registro, salvo engano, no PLC apresentado pelo IBDS existem 15 artigos que cuidam de minudenciar o regramento deste tipo securitário, aliás, sempre de alta relevância na seara securitária.
Deveras. Este instituto jurídico deve receber de parte do legislador uma normatização mais escorreita e detalhada, além de uma melhor tipificação legal para contemplar uma melhor proteção a todos os que se valem desta cobertura desde sua implantação no mercado, até os dias de hoje.
O que me leva a tecer uma nova reflexão sobre este tema diz respeito a uma minuta já pronta exarada pela Superintendência de Seguros Privados, que tomei ciência através do site Segs[7] no sentido de que haverá uma Consulta Pública sobre o Seguro de Responsabilidade Civil de Veículo (RC-V) do transportador de cargas.
Segundo a reportagem, o órgão fiscalizador do seguro busca atender o que prevê a Lei nº 14.599/2023 [8], que tornou obrigatória a contratação desta modalidade de seguro.
Diz o texto exarado pela Susep:
“A Superintendência de Seguros Privados (Susep) publicou no dia 20, no Diário Oficial da União, o Edital de Consulta Pública nº 03/2024, que trata da minuta de Resolução CNSP que estabelece diretrizes gerais aplicáveis ao Seguro de Responsabilidade Civil de Veículo (RC-V), para cobertura de danos corporais e materiais causados a terceiros pelo veículo automotor utilizado no transporte rodoviário de cargas.
O objetivo da proposta normativa é atender ao disposto na Lei nº 14.599, de 19 de junho de 2023, que tornou obrigatória a contratação do Seguro de Responsabilidade Civil de Veículo (RC-V) no transporte rodoviário de cargas, até então de contratação facultativa. Sublinhei.
O tema Seguros de Responsabilidade Civil dos Transportadores de Carga consta no Plano de Regulação da Susep para os anos de 2023 e 2024 e, sobre o assunto, já se encontra publicada a Consulta Pública nº 01/2024, que trata da minuta de Resolução CNSP que estabelece diretrizes gerais aplicáveis aos Seguros de Responsabilidade Civil dos Transportadores de Carga.
Ainda em decorrência das determinações trazidas pela nova Lei, a Susep já havia emitido, em outubro de 2023, Ofício Circular contendo esclarecimentos e orientações às Sociedades Seguradoras que operam com seguros dos grupos transportes e automóvel”. [9]
A entidade fiscalizadora do mercado de seguros pretende, ainda, realizar, em breve, uma audiência pública, para que a sociedade civil possa apresentar as suas sugestões e comentários e debater, de forma mais dinâmica, as propostas normativas da Susep e do CNSP, decorrentes da publicação da Lei nº 14.599/2023”[10].
O motivo deste ensaio penso ser extremamente relevante, a meu sentir, quando nos deparamos com uma Reforma do nosso atual Código Civil, com um PLC/29, de 2017 do IBDS, e da breve edição de uma nova lei extravagante – lei que se encontra fora dos textos legais -, que será objeto de uma Resolução com minuta já redigida pela SUSEP, sem falar na modificação do Código Nacional de Trânsito e no próprio Decreto-Lei nº 73/66, indiretamente afetado por todas estas alterações jurígenas.
Confesso que tal cipoal de legislação, neste momento, só traz insegurança jurídica para todos os que militam na área do Direito do Seguro.
Não vou adentar, aqui, também, em outra seara no que diz respeito ao princípio constitucional da hierarquia das leis, inúmeras vezes já dissertados por mim com publicações em diferentes periódicos jurídicos.
Gostaria de ter sido mais suscinto, claro e objetivo nestes comentários em relação ao tema acima epigrafado.
Porém, frente a esta enxurrada de movimentos em prol da atualização do Direito do Seguros não chegaremos “a um porto seguro”, perdoem-me a redundância gramatical, mas, que, tautologicamente, deve ser combatida nesta miscelânia de leis, resoluções, etc., que gravitam sobre o mesmo conteúdo legal.
Jamais se há de conseguir o ideal, até mesmo porque este só é atingido quando o homem alcançar sua perfeição em uma dimensão superior.
Porém, venia concessa, chega de retórica. É mister que o objetivo comum seja colimado, quer principalmente pela ação efetiva de nossos parlamentares, (sua função é legislar e dar proteção em um todos ao nosso ordenamento jurídico, latu sensu, quer por parte de experts da área correspondente ao seguro que arrosta inumeráveis benefícios a todos aqueles que se utilizam deste instituto para sua proteção e de todos os seus iguais.
Vou encerrar o presente ensaio com um grande pensador gaúcho nascido em 1865, Simões Lopes Neto, mas que até hoje suas palavras ecoam com uma atualidade ímpar:
“A nossa legislação é uma montanha de leis, de disposições, regulamentos, decretos, circulares, avisos, que se chocam, se enovelam, se disputam, sendo opulentíssima, é difícil de destrinchá-la; nós vemos seguidamente os nossos tribunais, alfândegas, comandos e repartições, em conflitos, em atritos de atribuições, despejarem perguntas e consultas sobre assumptos que deveriam ser correntes. Uma nevrose de desorientação lavra por toda a parte.[11]
Fica a advertência de um erudito escritor que já decantava seus ensinamentos para cautela dos homens que vivem no século XXI.
Porto Alegre, 24 de março de 2024
Voltaire Marenzi - Advogado e Professor
[1] Artigos 787 e 788, respectivamente, do atual Código Civil.
[2] NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. São Paulo. Thomson Reuters Brasil, 2019
[3] https://www.jusbrasil.com.br. Artigos.
[4] Obra citada, 3ª edição, revista e ampliada. Thomson/Iob, 2005, páginas 58 e 59.
[5] Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Atual Código Civil.
[6] Vide Google.
[7] Sexta-feira, 22 de março de 2024.
[8] Posterga a exigência do exame toxicológico periódico para obtenção e renovação da Carteira Nacional de Habilitação; e altera a Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997 (Código de Trânsito Brasileiro), a Lei nº 11.442, de 5 de janeiro de 2007, para dispor sobre seguro de cargas, e a Lei nº 11.539, de 8 de novembro de 2007, para dispor sobre a carreira de Analista de Infraestrutura e o cargo isolado de Especialista em Infraestrutura Sênior.
[9] Bis in idem.
[10] Ibidem.
[11] Annaes da Biblioteca Pública Pelotense. Educação Cívica, página 30
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