Remuneração de liquidante de seguradora
Revisitando o Portal do Superior Tribunal de Justiça[1] se colhe a seguinte notícia:
“Remuneração do liquidante de seguradora deve ser extraída da comissão paga à Susep, decide Quarta Turma”.
De fato. Há pleno acerto e total coerência através da leitura do bem lançado voto proferido pelo ministro Relator daquela Turma por ocasião do julgamento do Recurso Especial, número 2.028.232/RJ.
O ministro Antonio Carlos Ferreira, entendeu que a Superintendência de Seguros Privados – SUSEP -, exerce dupla função nos procedimentos de liquidação extrajudicial, quer como órgão processante do procedimento de liquidação, quer como liquidante da sociedade empresarial, com responsabilidade na realização do ativo e pagamento dos credores, conforme preceitua o Decreto-Lei 73/1966 que dispõe sobre o Sistema Nacional de Seguros, regula as operações de seguros e resseguros e dá outas providências.
Diz, no ponto, o Decreto-Lei ainda vigente:
“A SUSEP terá direito à comissão de cinco por cento sobre o ativo apurado nos trabalhos de liquidação, competindo ao Superintendente arbitrar a gratificação a ser paga aos inspetores e funcionários encarregados de executá-los”.[2]
Ao disciplinar a liquidação extrajudicial das sociedades seguradoras, o DL nº73/66 atribui à SUSEP função dupla, de órgão processante — tal como o Banco Central, nas liquidações das instituições financeiras em geral — e de liquidante, responsável pela realização do ativo e pagamento dos credores, como regula o art. 104 daquele diploma, nada impedindo, contudo, que essa
segunda função seja conduzida por longa manus, pessoa física, investida formalmente na função de natureza pública.[3]
Essa compreensão contextualizada no voto do Ministro Relator, foi seguida e determinada em total sintonia com os dizeres exarados pelo Decreto que regulamentou a Lei do Sistema Nacional de Seguros.
Com efeito, diz o artigo 82 da norma auxiliar:
“A SUSEP terá direito à comissão de cinco por cento sobre o ativo apurado nos trabalhos de liquidação. Dessa comissão, o Superintendente arbitrará gratificação a ser paga ao liquidante e funcionários encarregados de executá-los”.[4]
Dessarte, apesar de se cuidarem de dois diplomas legais antigos, ambos continuam em plena vigência.
Obedece-se, aí, o que reiteradamente enfatizo em minhas crônicas, isto é, o cumprimento do processo legislativo pertinente ao princípio da hierarquia das leis, previsto em nossa Constituição Federal.[5]
O excelso jurisconsulto Pimenta Bueno, em 1857, já prelecionara quanto aos regulamentos por esta forma sábia:
“Do princípio, também contestável, de que o Poder Executivo tem por atribuição executar e não fazer a lei, nem de maneira alguma alterá-la, segue-se que ele cometeria grave abuso em qualquer das seguintes hipóteses:(I) em criar direitos ou obrigações novas, porquanto seria uma inovação exorbitante de sua atribuição”.[6]
Neste sentido, o regulamento deve ficar abaixo da Lei e em plena adequação com ela sob pena de malferimento à norma Constitucional.
Já advertia mestre Pontes de Miranda ao comentar a Constituição Federal de 1946, no pertinente ao artigo que cuidava Das Atribuições do Presidente da República.[7]
Neste norte, ensinava e advertia o imorredouro jurisperito acima nominado:
“Onde se estabelecem, alteram ou extinguem direitos não há regulamentos, há abuso de poder regulamentar, invasão de competência do Poder Legislativo. O regulamento não é mais do que auxiliar das leis, auxiliar que sói pretender, não raro, o lugar delas, mas que possa, com tal desenvoltura, justificar-se e lograr que o elevem à categoria de lei”.[8]
“E quando falamos – artigo em coautoria com Paulo Henrique Cremoneze - em princípios jurídicos, falamos daqueles considerados gerais do Direito, que são majoritariamente fundamentais e constitucionais.
Os princípios constitucionais são mecanismos de calibragem do ordenamento jurídico, ferramentas pelas quais seu intérprete e aplicador se aproxima da justiça.
Há nos princípios algo que se confunde com a definição de Direito pelo Código Justiniano: "a constante e perpétua vontade de atribuir a cada um o que é seu". Gostamos dela não apenas por ser a informadora do Direito Ocidental, mas por ser a que remete diretamente ao conceito de Diké dos gregos antigos, segundo o qual Direito e Justiça são inseparáveis.
Pelo respeito aos princípios é que garantimos a mais segura aplicação da regra e, com isso, dilatamos o espaço da justiça. Em se tratando de princípio constitucional, esta afirmação se avoluma e se torna praticamente incontestável”.[9]
Feita essa ligeira digressão, se pinça, ainda, mais um trecho do voto proferido pelo relator no recurso especial, sob comento.
Confira-se o que foi dito, a seguir:
“Em caso de nomeação de agente público para conduzir o procedimento, eventual remuneração deve ser subtraída dessa comissão, porquanto a legislação aplicável não prevê outra forma de remuneração de tais agentes”.
Ademais em escólios hauridos do festejado Norberto Bobbio, ato contínuo acentua o nobre ministro relator:
“A passagem da regra geral à regra especial corresponde a um processo natural de diferenciação das categorias, e a uma descoberta gradual, por parte do legislador, dessa diferenciação. Verificada ou descoberta a diferenciação, a persistência na regra geral importaria no tratamento igual de pessoas que pertencem a categorias diferentes, e, portanto, numa injustiça. Nesse processo de gradual especialização, operado através de leis especiais, encontramos uma das regras fundamentais da justiça, que é a do suum cuique tribuere (dar a cada um o que é seu)”.[10]
Permitam, caras leitoras e dignos leitores, que siga um pouco mais adiante do que escreveu Bobbio na obra referenciada pelo voto do relator:
“Entende-se, portanto, por que a lei especial deve prevalecer sobre a geral: ela representa um momento ineliminável do desenvolvimento de um ordenamento. Bloquear a lei especial frente à geral significaria paralisar esse desenvolvimento”.[11]
A conclusão final do voto lapidar é essa:
“A Lei n. 6.024/1974 dispõe sobre a intervenção e a liquidação extrajudicial de instituições financeiras. Porém, o Decreto-Lei n. 73/1966 cuida do processo de liquidação de um tipo específico de instituição financeira (equiparado pelo art. 18, § 1º, da Lei n. 4.595/1964), cujo agente fiscalizador– a SUSEP – é diverso daquele que atua no sistema financeiro – o Banco Central do Brasil.
Em consequência, não é aplicável à presente causa, por se referir à liquidação de sociedade seguradora de capitalização, o art. 16, § 2º, da Lei n. 6.024/1974, que prevê a fixação dos honorários do liquidante pelo Banco Central do Brasil – aqui, a SUSEP–, pagos por conta da liquidanda.
Vale referir, finalmente, que também a Lei n. 11.101/2005 – Lei de Recuperação Judicial e Falências – tem similar disposição em seu art. 24, § 1º, ao prever que o total pago ao administrador judicial não excederá 5% (cinco por cento) do valor devido aos credores submetidos à recuperação judicial ou do valor de venda dos bens na falência, o que equivale, nesta última hipótese, ao ativo apurado no processo de liquidação”.[12]
Finalizo mais uma crônica que cuidou de comentar uma decisão escorreita, proferida pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no que tange a remuneração de liquidante em sede de liquidação de uma seguradora com a maestria dos ensinamentos de Orlando Gomes:
“Toda vez que há necessidade de proteger uma categoria de pessoas que está numa posição, digamos, de inferioridade, que pode ser explorada por empresas ou outras entidades, toda vez que isto ocorre, repito é através de um bom sistema, inclusive legal, de repressão a essa atividade, que se pode dar essa garantia. E isto se faz de tal modo que há hoje inúmeros crimes contra a economia popular”.[13]
Enfim, quando há exploração de qualquer negócio jurídico nomeadamente em se tratando de Previdência Complementar, ou de Sociedades Seguradoras, existe Lei – verdade que antiga e que precisa de atualização –, mas que pune os infratores com a decretação de liquidação extrajudicial de suas empresas mal geridas, que podem levar não só a nomeação de liquidantes e de membros componentes de comissões de inquérito por parte do órgão fiscalizador do sistema com a respectiva nomeação de liquidante com plenos poderes de administração,[14] ou o regime repressivo previsto na Lei que trata do Sistema Nacional de Seguros.[15]
Afinal, Legem habemus! (Nós temos uma Lei).
Isso é que se rotula de segurança jurídica ao cidadão.
Porto Alegre, 03/11/2022
Voltaire Marensi - Advogado e Professor
[1] www.stj.jus.br 02/11/22
[2] Artigo 106 do Decreto-Lei nº 73, de 21 de novembro de 1966.
[3] Parte inicial do voto do Ministro Relator integrante da Quarta Turma do STJ.
[4] Decreto nº 60.459, de 13 de março de 1967
[5] Artigo 59 da Constituição Federal de 1988.
[6] Voltaire Marensi. O Seguro no Direito Brasileiro (temas Atuais). Editora Síntese Ltda, 1ª edição, 1992, página 75.
[7] Artigo 87, inciso I.
[8] Voltaire Marensi. Obra e página citada.
[9] https://www.migalhas.com.br/O-contrato-de-seguro-e-a-hierarquia-das-normas. Voltaire Marensi e Paulo Henrique Cremoneze. 24 de agosto de 2021.
[10] Excerto do voto do Ministro Antonio Carlos Ferreira.
[11] Teoria do Ordenamento Jurídico. Editora Edipro, 2020, página 97.
[12] Parte final do voto do relator no recurso especial número 2.028.232RJ, julgado em 11/10/2022.
[13] I Congresso e I Mostra Nacional da Previdência privada Aberta, organizado por lemos Britto, página 49, 1980.
[14] Art. 54 da Lei Complementar 109/2001.
[15] Artigos 108 a 121 do Decreto-Lei nº 73/66.
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