O Exacerbado Formalismo Prejudica a Boa-Fé
Voltaire Marensi - Advogado e Professor
Diante de alguns processos julgados perante o Egrégio Superior Tribunal de Justiça (STJ), às vezes, me questiono se é imperiosa e inquestionável a necessidade processual ou regimental dos Tribunais que determinam o não conhecimento dos recursos perante às Cortes Superiores, quando, no caso concreto, subjaz uma forte conotação em que a boa-fé de uma das partes envolvidas é “tragada” pelo princípio, por exemplo, de uma questão federal, ou, eventualmente, de um óbice regimental.
Todos os profissionais que militam na área sabem que os recursos especiais só são viáveis nas hipóteses em que a decisão hostilizada tenha ferido um dispositivo subsumido em uma lei ordinária, - questão federal - ou, eventualmente, tenha ocorrido interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal, letra “c”, do inciso III, do artigo 105 da Constituição Federal. (Dissídio jurisprudencial).
Faço essa breve digressão para saber se, como disse alhures, um fato de extremada relevância não merece uma adequada mitigação diante de uma situação excepcional que poderia ter passado por uma acurada análise do que teria ocorrido nas instâncias inferiores.
A colocação acima, em tese, cede diante do que determina o rigorismo da lei, além, evidentemente, dos inúmeros e incontáveis processos que a cada dia avolumam às estatísticas lançadas pelos respectivos Tribunais Julgadores.
Todavia, como toda a regra geral deve sofrer uma exceção, relato, de modo sucinto, o que se passou em um dos processos que patrocinei os interesses de uma senhora viúva, aliás, de parcos recursos, perante o Egrégio Superior Tribunal de Justiça.
Cuidava-se de um seguro de vida individual em que o segurado mantinha, há alguns anos, uma apólice de um valor relativamente pequeno no qual figurava como beneficiária sua mulher.
Sabedor a certa altura da vida de que era portador de um câncer galopante o segurado foi, pessoalmente, perante à instituição bancária que havia contratado o seguro e relatou a seu gerente com o intuito de aumentar a importância segurada e proteger melhor sua companheira de longos anos, oriundo de um belo relacionamento conjugal.
Mesmo frente a tamanha boa-fé e, sobretudo, de sua extremada ingenuidade o banco tratou, incontinenti, de cancelar o seguro de vida que estava em plena vigência com o segurado.
Não adiantou tentar se valer de apelos metajurídicos e de que tentaria obter provas através de imagens ou outros meios de reprodução mecânica pois ele, segurado, não se municiou sequer de testemunhas quando de sua comparência ao estabelecimento bancário. A dura realidade é que com o seu falecimento no evolver dos fatos sua mulher ficou ao total desamparo de uma proteção que faria jus, caso não tivesse relatado a verdade, verdadeira, no dizer elegante do poeta Carlos Drummond de Andrade do que lhe flagelou.
Eis, aí, a questão: embora não se cuide de uma constituição de uma prova robusta em sede de fatos ocorridos nas instâncias superiores, é princípio comezinho do advogado da origem saber que o Superior Tribunal de Justiça, não reexamina prova a teor de seu enunciado 07.
Enfim, “ a letra fria da lei” foi aplicada e a viúva ficou sem amparo e totalmente relegada ao oblívio.
A decisão foi emanada e os recursos daí decorrentes foram manejados, tempestivamente, mas, totalmente desconhecidos pela Corte Superior.
Aplicou-se, em síntese, a lei.
E a Justiça???
Eduardo Couture, falecido prematuramente aos 52 anos de idade, Catedrático de Processo Civil, decano da Faculdade de Direito de Montevidéu, deixou um notável patrimônio jurídico, dentre os quais “Os 10 Mandamentos Dos Advogados”.
Diz o quarto: LUTA.
“Teu dever é lutar pelo Direito, mas no dia em que encontrares em conflito o Direito e a Justiça, luta pela Justiça”.
No caso que relatei aos meus caros leitores e leitoras, muito embora a boa-fé seja um princípio cardeal em sede de direito securitário, além de se constituir em uma norma infraconstitucional com assento vigente no artigo 422 do nosso Código Civil, o fato é que ela não vingou frente à casuística em tela.
O pior de tudo é como fica o caso para o advogado explicar à sua cliente.
O caso foi malconduzido na origem?
O STJ aplicou a letra fria da Lei?
O advogado não foi habilidoso e persuasivo na construção de sua tese?
Acredito que estas indagações não justificam o “mal-estar” que um advogado prestes a completar 50 anos de formado possa estar em paz com sua consciência.
Ela, a consciência, parafraseando Gabriel García Márquez, escritor colombiano, Prêmio Nobel de Literatura, em sua consagrada obra “Cem Anos de Solidão”, se fundamenta no princípio de que uma pessoa – no caso em tela um causídico –, se tivesse perfeitamente arrumado os assuntos de sua consciência situação em que poderia dormir, sem qualquer sofisma, todas as noites o sono dos justos.
Será que este não é um caso, entre tantos outros, infelizmente, ocorridos na seara da justiça a ensejar nossa reflexão???
Porto Alegre, 06/10/2020
Voltaire Marensi - Advogado e Professor
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