Em que mundo vivemos?
Por Christiane Couve de Murville*
Maria viu a vizinha no jardim e perguntava-se o que fazia ela passeando, ao invés de trabalhar. Para o carteiro no portão, a mulher no jardim tomava sol, usava short e blusa decotada para fixar vitamina D. No entanto, a moradora da frente achou indecente uma mulher madura vestida assim; de baby-doll! A filha, que observava da janela, achava que a mãe tinha ido colher salsinha na horta.
Já o netinho sabia que a avó apreciava o perfume das flores. Quanto ao mendigo na calçada, levou um susto quando reparou na sombra da mulher rodando não longe de si. Imaginou um fantasma vindo agarrá-lo! Mas Djanira, este era o nome da senhora no jardim, tinha saído de casa para refrescar a cuca. O clima na sala estava pesado!
Todo mundo reparou em Djanira no jardim, porém cada um colou sobre a cena vista suas ideias, impressões, dúvidas, desconfianças, seus pensamentos, medos, preconceitos, julgamentos de certo ou errado e sabe-se lá o que mais, que carregava dentro de si. Só o cachorro não pensou nada!
Também ninguém viu Djanira de verdade. Cada um definiu e projetou em sua realidade a Djanira de sua cabeça, com estas ou aquelas características, comportamentos, intenções e tudo mais. Aparentemente, as pessoas vivem em mundos distintos. Pois, diante de uma mesma cena, um fenômeno ou acontecimento qualquer, um vê uma coisa, outro percebe outra, e surgem interpretações diversas.
Quando estudamos a fisiologia dos sentidos, observamos que todo estímulo que nos chega por esses órgãos passa por um processamento. A informação captada pelas células sensitivas é interpretada no cérebro, gerando representações, criando memórias e imagens na nossa mente. E cada um interpreta de um jeito, em função de experiências já vividas, de desejos, expectativas, crenças, humores, condicionamentos e tudo que compõe sua bagagem pessoal. Agregamos às informações que nos chegam através dos sentidos a nossa análise, compreensão, perspectiva e escala de valores.
Então, o que seria a realidade de verdade? Certamente, nenhuma das versões particulares criadas pela mente das pessoas. Mas, talvez, todas elas ao mesmo tempo! O universo compreenderia, então, uma infinidade de bolhas oníricas possíveis coexistentes e entrelaçadas, e a maioria das pessoas estaria na sua viagem pessoal, correndo atrás de seus interesses, lidando com suas confusões, leituras tendenciosas da realidade e criações mentais, sem realmente enxergar muito além de seu mundinho particular.
Talvez seja difícil para alguns se manter no estado natural de simples observador, que aparece na luz do olhar dos seres inocentes. Porém, a possibilidade de alcançar o estado contemplativo existe para todos. Mas é necessário aquietar pensamentos e parar com julgamentos e conjecturas rebeldes sobre tudo e todos para desenvolver o “olhar do coração”, livre do peso de querer ter ou reter qualquer coisa, e então se curar de projetar seu mundo na tela perfeita do mundo real.
*Christiane Couve de Murville é doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP), com especialização em psicodrama e orientação profissional. Tem dupla nacionalidade, brasileira e francesa. Publicou a trilogia “A Caverna Cristalina” e o “A vida como ela é”, no Brasil e na França, o “Até quando? O vai e vem” e o "Até quando? A prisão", além de livros e artigos acadêmicos. Com experiência artística em escultura e cerâmica, ela também é a ilustradora de suas obras. No próximo dia 8 de dezembro, a escritora lança os livros Até Quando? O vai e vem e Até Quando? A prisão, que incitam reflexões sobre a existência humana e o mundo que percebemos ao redor. No evento de lançamento da obra, haverá exposição das ilustrações da autora.
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