Pacto Nacional pela Saúde é prioridade para 2021
Novo presidente da AMB, o ginecologista e obstetra César Eduardo Fernandes, considera urgente repensar o sistema de saúde em prol da qualificação da assistência, além da imediata valorização dos médicos. Ele assevera:
"A disputa política nos moldes em que ocorre hoje é entrave aos interesses em saúde da população"
Presidente eleito da Associação Médica Brasileira pela chapa de oposição Nova AMB, ao período 2021-2023, César Eduardo Fernandes toma posse daqui alguns dias, em janeiro.
De carreira acadêmica longa e respeitada, graduou-se pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Lá, fez Residência Médica em Ginecologia e Obstetrícia, mestrado e doutorado em Tocoginecologia. Além disso, é livre-docente pela Universidade Federal da Bahia e Professor Titular da Faculdade de Medicina do ABC.
No associativismo, é protagonista de campanhas bem sucedidas de defesa profissional e por melhor remuneração aos médicos e serviços dignos aos pacientes em suas passagens pelas presidências da Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo (Sogesp), entre 2010 e 2013, e da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), de 2016 a 2019. Ele também defende arduamente a excelência do atendimento à mulher, as pacientes de sua área de atuação.
A despeito do currículo admirável, César é igualmente admirado pelo jeitão simples e a preocupação com o coletivo, especialmente com as demandas de seus colegas, os médicos.
Ele mesmo se diz um eterno caipira. Nasceu em Araçatuba e viveu sua infância e adolescência em Martinópolis. Nutre ainda um saudosismo intenso por estas duas cidades do interior do estado de São Paulo. Veio para a capital para cursar Medicina e se tornou um paulistano de coração. Não perde, no entanto, a visão e o entendimento de que o Brasil é um todo e precisa avançar em todas as regiões.
Confira entrevista com César Eduardo Fernandes, a seguir.
Qual sua avaliação do sistema de saúde no Brasil, nos dias de hoje?
O Sistema Único de Saúde, nosso SUS, é uma proposta admirável e vanguardista em termos de integralidade e universalidade da assistência. Todos os médicos brasileiros compartilham desta opinião, assim como temos admiração internacional pelo formato do SUS. Ocorre que entre a teoria e a prática, há uma distância que só cresce, em virtude de falta de vontade política, insuficiência de investimentos, equívocos em gestão, corrupção e por aí segue.
Acha que essas fragilidades tiveram algum impacto nesse período de pandemia?
Claro, os reflexos deste conjunto de dificuldades foram (e continuam sendo) sentidos de maneira perversa na pandemia. Não estávamos – como não estamos – preparados para responder nem a demandas corriqueiras quanto mais as graves. Perdemos e continuamos computando óbitos de milhares de brasileiros, entre os quais colegas médicos. Patinamos em debates inúteis, em vez de apoiar o posicionamento das autoridades de saúde mundial e adotar protocolos organizados e mais efetivos. Assim, o negacionismo ganhou asas. Agora mesmo estamos pagando a segunda parcela da conta da irresponsabilidade com o aumento de casos em todo o País com o recrudescimento do número de casos e de óbitos.
A disputa política colidiu com os interesses em saúde pública?
De forma contundente, digo. Saúde é coisa séria, trata de vidas, não pode ser levada ao improviso ou aos ventos de ideologias. Temos de unir médicos, todas as nossas entidades, assim como a sociedade para repensar o sistema brasileiro, para tratar a saúde como política de Estado, não como questão partidária. O Brasil não pode adiar essa urgência de seus cidadãos. Ao tomar posse na AMB, convidaremos para esse debate instituições como OAB, CNBB, entre outras. Queremos o País todo envolvido em um pacto nacional por saúde aos brasileiros. Uma país respeitável se faz com gente saudável e bem cuidada.
Como vê a situação do médico, de forma geral, hoje no Brasil?
A epidemia de Covid-19 trouxe um grande problema para o exercício da Medicina e, como consequência, para a vida dos médicos. Tenho orgulho dos meus colegas que enfrentam com bravura esse momento para prestar a melhor assistência possível à população brasileira. Por outro lado, me preocupa muito a falta de condições com as quais os médicos seguem trabalhando após nove meses de dedicação absoluta. Eles não têm como se proteger, ainda faltam equipamentos de proteção individual (EPIs), ou quando estão disponíveis não são de qualidade adequada para quem está na linha de frente atendendo pacientes com a doença confirmada ou suspeita. De outra parte, há os danos econômicos sofridos por toda a população e pela classe médica. Os nossos colegas que atendem no âmbito da saúde suplementar têm enormes prejuízos por redução dramática da atividade. Alguns ficaram meses com o consultório fechado, arcando com o ônus de pagamento de toda a estrutura dos funcionários, sem a contrapartida de serem remunerados por prestação de serviço. Espero que, ao final dessa pandemia, a condição do médico seja reavaliada pelas autoridades públicas sanitárias e pelos gestores de saúde, de maneira mais efetiva e eficaz. Ele não pode ter a sua profissão precarizada.
Em sua avaliação, a unidade médica pode ajudar a reverter problemas como esses?
Eu entendo que sim e vejo com tristeza a fragmentação do movimento médico. Houve uma condução equivocada em tempos recentes. Se há inúmeros exemplos excelentes no movimento associativo, tivemos uns lamentáveis; basta observar a trajetória de certos dirigentes para ver claramente os interesses de natureza pessoal e a não preocupação com o movimento médico. São pessoas só querem se perpetuar em algumas instituições, inércia, numa improdutividade triste, sem comprometimento qualquer.
Quando você foi presidente da Sogesp, os ginecologistas e obstetras fizeram uma campanha histórica por valorização, que acabou contagiando todo o movimento médico. Quais foram os frutos desse trabalho?
Na época, vivíamos uma situação desalentadora no que diz respeito à assistência ao parto, extremamente desvalorizada. Eram vergonhosos os honorários que se pagavam na saúde suplementar e os médicos estavam sem interesse nesse atendimento. Então, fizemos uma luta intensa com grande divulgação na mídia. Talvez esse seja o maior dividendo que tivemos, com o engajamento de toda a comunidade de ginecologistas e obstetras, com ações feitas em vários locais públicos. Assim, mudamos a relação de precariedade que vivíamos na assistência médica. Ainda está longe do que gostaríamos que estivesse, mas certamente ficou no coração dos médicos que tínhamos uma sociedade que caminhava ao lado dele.
Como garantir conhecimento científico ágil e acessível em todo o Brasil, país de dimensões continentais?
Sempre entendi que programas de educação continuada, elaborados pelas diferentes sociedades médicas, deveriam chegar aos rincões do Brasil. Mesmo antes da pandemia, como presidente da Febrasgo, investi no ensino a distância, através de ferramentas digitais, e, neste momento, mesmo com a situação trágica que vivemos, temos ensinamentos, em particular em relação a esses instrumentos e como eles podem ser úteis na educação continuada. Acredito que esse aprendizado chama nossas associações médicas a se profissionalizar. É um bom indicador.
Hoje, quais os principais problemas da formação médica?
É extremamente difícil manter um nível qualificado de educação médica, mesmo nas grandes instituições de ensino. Preocupa-me extremamente a abertura indiscriminada de novas escolas médicas. Acredito que a maioria não tem condição de formar um grande profissional. Defendo, portanto, uma política de revisão das liberações de funcionamento das escolas. E que, claro, não haja continuidade de faculdades que não reúnam condições. Do mesmo modo, defendo reavaliação sistemática, criteriosa e justa a todos os programas de Residência Médica para checar se possuem as competências exigidas pelo Ministério da Educação.
Como atrair os médicos para as entidades representativas?
É importante que as entidades venham ao encontro dos interesses deles. Hoje, o jovem médico vê o exercício profissional sob outra ótica e as entidades associativas têm de se alinhar com esse novo mundo tecnológico que os envolve. Em contrapartida, algumas associações médicas estão envelhecidas: vivem como se estivessem há 30 anos, não acompanham transformações, não ouvem e não dão espaço aos novos profissionais. Como consequência, esse médico não se sente atraído. Eles também não veem protagonismo de algumas entidades em relação à valorização profissional e à defesa dos seus interesses. São bandeiras que não adiantam apenas serem levantadas, o importante é mostrar trabalho nessa direção. Assim o faremos na AMB.
Qual sua opinião sobre a atuação da ANS?
Há duas décadas, os médicos solicitam a intervenção da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para tornar mais equilibrada e justa a relação entre as operadoras de planos de saúde, eles, os laboratórios, os hospitais e os pacientes. A classe médica busca a construção de um sistema em que as pessoas (usuárias) tenham coberturas para suas principais demandas em Saúde, segurança e autonomia para o exercício da boa Medicina, além de remuneração adequada à importância de cuidar de vidas humanas. Lamentavelmente, em tempos recentes, vemos a ANS cada vez mais dissociada de sua missão de “promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à Saúde, regular as operadoras setoriais – inclusive quanto às suas relações com prestadores e consumidores – e contribuir para o desenvolvimento das ações de Saúde no País”.
E especificamente em relação à contratualização e honorários?
Ao não exercer o seu papel institucional, a ANS confere poder ilimitado às operadoras, que descredenciam médicos e demais prestadores de serviços sem critérios claros, inúmeras vezes sem justificativas; e impõem honorários indignos e, em situações não raras, até sem contratos ou com termos de adesão que não podem ser negociados. Modelos de relacionamento das operadoras, burocráticos e pouco transparentes no pagamento de honorários, facilitam glosas, impossibilitando unilateralmente que os profissionais recebam honorários pelos serviços prestados. Diante de tais abusos, a ANS se esconde atrás de siglas, nomenclaturas, procedimentos, posicionamentos controversos e muita burocracia para mascarar o não cumprimento de suas obrigações. Com tais subterfúgios, ao continuar ignorando todas as dificuldades enfrentadas pelos médicos e demais prestadores de serviços vinculados de alguma maneira às operadoras de planos de saúde – em razão de justificativas como essas -, a ANS atesta inoperância endêmica e sequer faz cumprir o que determina a legislação em vigor.
O que os médicos podem fazer para melhorar a situação?
Não há atendimento à saúde sem o médico. Aliás, Medicina se faz pelo conjunto dos médicos e dos demais profissionais de saúde. Assim, não existe objeto de contrato de plano de saúde sem a atuação do médico. Como médicos, é nossa obrigação exigir a valorização da profissão junto aos conselhos, associações, sindicatos e sociedades de especialidades. São representações que têm por dever se dedicar ao assunto e, em conjunto, abrir caminhos alternativos para assegurar equilíbrio mínimo neste setor. É missão de vulto tão grandioso quanto assegurar que nossos pacientes sejam respeitados pelos planos de saúde, coibindo abusos, negativas de cobertura e garantindo-lhes acesso ao que a Medicina tem de melhor, em todos os campos de sua abrangência.
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