Roteiro de Sustos #9 - Assombros Boêmios em BH
Minas Gerais sempre foi um terreno fértil para histórias fantásticas, afinal, é o segundo Estado mais populoso do Brasil. O fantástico sempre fez parte de sua secular tradição. Ele nos assombra nos causos que misturam fatos e faz de conta como se fossem uma única coisa. Há sempre noite escura. Noite de Pé de Garrafa, noite de Papafigo e lobisomens, devoradores de toda gente, fantasmas da memória de antigas freguesias e arraiais, mão fria que puxa a coberta. Quando Belo Horizonte foi edificada, as pessoas que migraram para cá trouxeram essas histórias e seus coisos e, com isso, a capital acabou ganhando as próprias lendas. Se você tiver sorte – ou azar – pode juntar-se ao exclusivo clube dos que juram com a mão em cima da bíblia que viram fantasmas e monstros pelas ruas da capital.
É o que afirma M. R. Terci, escritor e colunista da Revista Aventuras na História. Sucesso de público e vendas na Bienal Internacional do Livro de São Paulo com Imperiais de Gran Abuelo, Terci já percorreu muito chão e muita página à caça desses mistérios e estará lançando seu novo livro O Bairro da Cripta, pela Editora Pandorga, em maio desse ano.
A pedido de nossa redação, ele elaborou uma lista repleta do mítico popular, suas tradições e histórias das assombrações mais ilustres que habitam o imaginário mineiro:
Quem passa pelas vizinhanças do Cemitério do Bonfim ouve dos moradores do bairro e antigos boêmios renitentes, um dos casos mais populares de Belo Horizonte. Nos anos 1950, o Bairro Lagoinha era reduto de seresteiros, dançarinos e amantes da noite mineira. Ali, a menos de um quilômetro do Centro viviam à margem da capital, com seu comércio agitado, os botequins sempre abertos e cheios, suas pensões, o ribeirão Arrudas, o mercado, as farmácias, os camelôs, os cines Paisandu e São Geraldo. O Lagoinha, com muitos imigrantes italianos, hoje tem um panorama diferente, os casarões foram demolidos, a boêmia, das tradicionais rodas de samba e dos redutos do baixo meretrício perdeu espaço. Mas, com frequência, ela ainda pode ser vista. Nem mesmo a chegada do trem metropolitano, nos anos oitenta, afastou a moça pálida, mas muito bonita, com cabelos loiros e esvoaçantes da circunvizinhança. Saudosa da paquera dos admiradores boêmios de outrora, à distância, ela observa o ir e vir de quem ainda tem tempo da saideira. Quando se achega, dizem, atraí os homens até o cemitério prometendo compartilhar um beijo ou dois e então desaparece entre os túmulos;
Como a maioria das cidades mineiras do período colonial, o arraial do Curral del Rey surgiu em derredor das primeiras trilhas abertas. A localidade já havia sido um importante ponto de abastecimento, contudo, desde o fim da mineração de ouro sua população diminuiu e a economia local entrou em decadência. Já no final do século passado, restavam mais de 4 mil habitantes, presos a uma rotina simples e monótona no trabalho de casa ou na lavoura. A Proclamação da República, em 1889, trouxe aos curralenses a esperança de transformações e nesse clima de euforia, eles receberam a notícia da construção da nova capital. Durante três dias o arraial se pôs em festa com missa solene, discursos, bandas de música e bailes. Seus habitantes já sonhavam com modernização e o progresso que a capital traria para a região. Nem imaginavam que, nos planos dos construtores, não havia espaço reservado para eles. Em1897, implantou-se a cidade de Belo Horizonte. As pessoas que moravam ali tiveram suas casas demolidas e foram expulsas da área sendo obrigadas a se realojarem fora dos limites da Avenida do Contorno, que, na época traçava o limiar entre a moderna capital e a periferia rural e atrasada. Naquele local, ponto mais alto da cidade, construíram a Praça e o Palácio da Liberdade que serviria de residência para os governadores de Minas. Reza a lenda que os antigos moradores do Curral del Rey amaldiçoaram a nova cidade e até hoje voltam do túmulo para assombrar o lugar com gritos assustadores e violentos pancadas de protestos nas paredes da sede do governo. Os governadores João Pinheiro – 1908 – e Raul Soares – 1924 –, morreram dentro do Palácio, o que reforçou a crença de fantasmas. Itamar Franco afirmou, recentemente, que sentia estranhas presenças no local;
A região de Venda Nova, cujo nome provém do bairro central homônimo, onde havia a bifurcação das rotas que iam para o Norte e para o Oeste de Minas, é conhecida por seu tradicional Baile da Saudade, pelas manifestações culturais nas Quadras do Vilarinho, pelo Centro Cultural de Venda Nova, pelas casas centenárias da Rua Padre Pedro Pinto e por tantas outras atrações ligadas ao mundo moderno como a Colônia de Férias do SESC, o moderno Shopping Estação e pela Cidade Administrativa de Minas Gerais, sede do Poder Executivo de Minas Gerais. Conta-se que em 1983, o empresário Francisco Filizzola, dono das Quadras do Vilarinho, engendrou um plano peculiar para atrair visitantes. Muito embora tudo não passasse de estratégia de marketing, o personagem central da história ganhou notoriedade e efetivamente ocupou seu lugar no folclore da cidade. A lenda teve origem na Avenida Vilarinho, palco de muitos forrós, gafieiras e bailes de todo tipo, onde, segundo consta, durante um dos muitos concursos de dança promovidos pelo comércio local, um homem desconhecido, bonito e muito bem vestido à maneira dos anos 1950, com terno e chapéu de feltro, desafiou o célebre e premiado dançarino Ricardo Malta no palco central. Ao final, o desconhecido arrancando suspiros das moças presentes e as mais altas notas do júri, triunfou sobre seu adversário e ao tirar o chapéu para agradecer pelas rosas – e, dizem, calcinhas – atiradas no palco, apareceram, à vista de todos, os dois chifres que o diabólico cavalheiro estava escondendo. O alvoroço foi generalizado e o Capeta do Vilarinho, após dizer que voltaria para um novo desafio, desapareceu em meio à confusão;
O Viaduto Santa Tereza é um dos símbolos da cidade de Belo Horizonte. Construído em 1929, foi projetado pelo engenheiro Emílio Baumgart. A arrojada obra arquitetônica foi imortalizada pelo escritor mineiro Fernando Sabino, na obra Encontro Marcado, e cumpre o papel de portal para o bairro que lhe deu o nome, o Santa Tereza, um dos maiores centros culturais da cidade, conhecido pela intensa vida noturna. No ir e vir de tantas vidas e gentes, o Viaduto Santa Tereza não poderia deter sua própria assombração. A sombra sem rosto que uiva, chora e cheira a enxofre, e que gostava de assustar os antigos motoristas dos bondes, hoje se pendura nas bordas do viaduto e, ocasionalmente, apavora os motoristas e pedestres;
Algumas almas penadas são pontuais além da conta e arrastam rotinas e grilhões pela eternidade. Nas noites de junho, à meia-noite e trinta, na Rua do Ouro, quase na esquina da Avenida do Contorno, um cavalheiro vestido à maneira dos antigos funcionários públicos da década de vinte, de terno preto e guarda-chuva, observa os transeuntes e carros passarem. Esse espectro silencioso e imóvel, traz consigo a lembrança de outrora, quando havia disputa de poder entre as oligarquias e o funcionalismo público de Belo Horizonte tinha bairro próprio. Hoje, esse burocrata do passado recebe do tempo aquilo que distribuía: o esquecimento, a escuridão da noite, o vazio do ilimitado espaço urbano.
*M. R. Terci é escritor, roteirista e poeta. Antes de se dedicar exclusivamente a escrita, foi advogado com especialização em Direito Militar e mestrado em Direito Internacional, Ciência Política, Economia e Relações Internacionais. Autor de Imperiais de Gran Abuelo, publicada pela Pandorga, e o criador da série O Bairro da Cripta, lançada anteriormente pela LP-Books, obras que reforçaram seu nome como um dos principais autores brasileiros de horror da atualidade. Com base em fatos históricos, Terci substitui os castelos medievais pelos casarões coloniais, as aldeias de camponeses pelas cidadezinhas do interior, os condes pelos coronéis e as superstições por elementos de nosso folclore e crendices populares, numa verdadeira transposição do gótico para a realidade brasileira. Seus livros não são apenas para os fãs do gênero horror. Seu penejar é para quem aprecia uma narrativa envolvente, centrada na experiência subjetiva dos personagens mediante as possibilidades que o contexto sobrenatural de suas estórias permite.
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