Mudança de paradigma na conservação de microrganismos é urgente, apontam pesquisadores
Um grupo de cientistas de 15 países e 19 instituições, entre eles do Centro de Pesquisa em Genômica Aplicada às Mudanças Climáticas (GCCRC), uma parceria entre Embrapa e Unicamp, aponta a necessidade urgente de adequação de coleções de cultura de microrganismos e biobancos para abarcar as demandas das crescentes pesquisas em microbiomas. Essas infraestruturas devem ser capazes de conservar íntegras, por exemplo, as amostras de solo, plantas, fezes com seus respectivos fungos, bactérias e compostos derivados, que juntos criam um microssistema único.
No artigo publicado nesta quinta-feira (13) na revista Trends in Microbiology, os cientistas que integram a iniciativa Microbiome Support argumentam que o recente boom do interesse de cientistas e da indústria para entender as funções do microbioma e dos seus potenciais usos na agricultura, indústria de alimentos e na medicina tem impulsionado uma mudança de paradigma nas práticas de preservação de microorganismos.
Uma etapa fundamental da pesquisa científica é a conservação do material de referência para documentação e futuras consultas. No campo da microbiologia, os microorganismos são tradicionalmente preservados nas chamadas coleções de cultura, onde se encontram os organismos vivos isolados, suas células ou partes em ambientes estéreis. Já os biobancos abarcam a conservação de material biológico, ou seja, qualquer substância derivada, ou parcialmente obtida, de um organismo. Muitos biobancos estão focados na conservação de amostras de tipos de materiais humanos como tecidos, soro, sangue, RNA, DNA.
Entretanto, para a conservação adequada de material de microbiomas ainda é preciso avançar quando se trata de infraestrutura de depósito e conservação de amostras de pesquisa. Microbiomas são sistemas dinâmicos e complexos que consistem em bactérias, arquéias, fungos, algas, protistas e vírus e suas interações com o ambiente, que podem ser, em alguns casos, os hospedeiros.
As pesquisas na área têm crescido nos últimos dez anos, abrangendo desde a influência da microbiota intestinal no funcionamento do cérebro humano até o impacto das bactérias marinhas nas mudanças climáticas, conforme artigo publicado em julho na revista Microbiome, em coautoria com pesquisadores do GCCRC. Estima-se que os produtos baseados em microbioma irão representar 60% dos produtos de controle biológico até 2025 e movimentarão mais de 10 bilhões de dólares até lá, de acordo com dados apresentados por especialistas em um painel do programa Microbiome Support.
Como o foco do estudo do microbioma é toda amostra e não suas partes, as coleções de cultura muitas vezes não estão preparadas para o depósito adequado destes materiais. O foco de conservação destas instituições é manter o microrganismo vivo, mas isolado de seu microbioma. Ainda que algumas coleções possam fornecer combinações de microrganismos para simular as interações entre os microrganismos, os autores afirmam que isto não é suficiente.
Já os biobancos incorporam tecidos ou amostras de material biológico de uma maneira mais ampla e aberta. Contudo, suas amostras muitas vezes são congeladas ou fixadas, o que representa uma fotografia daquele momento. As técnicas atuais de conservação disponíveis em biobancos nem sempre viabilizam a estabilidade de todos os componentes microbianos ao longo do tempo.
“No nível funcional, a remoção de um único componente microbiano crítico em decorrência de alguma técnica de armazenamento não apropriada para aquela amostra pode afetar irreversivelmente a integridade do microbioma”, explica Matthew Ryan, curador da Coleção de Recursos Genéticos do CABI (Reino Unido) e primeiro autor do artigo.
Algumas iniciativas como os bancos de fezes de pacientes estão na vanguarda do desenvolvimento de processos de manipulação e protocolos de qualidade de amostras de microbioma. Essa experiência não apenas melhorará a qualidade do produto disponível para uso posterior, mas poderá auxiliar cientistas que trabalham em outras áreas como a de alimentos e agricultura. No domínio agrícola, o Rothamsted Sample Archive, no Reino Unido, armazena grãos de trigo, palha, solo e pastagem. Os bancos de sementes do Kew Millennium, também no Reino Unido, preservam sementes com seus microrganismos associados.
Mudança de paradigma
Para os autores, a ciência do microbioma está sinalizando a necessidade de mudança de paradigma em termos de preservação de amostras de microrganismos. Os estudos de microbioma cada vez mais apontam para a importância de migrar de um modelo de preservação de organismos isolados para a preservação de toda a interação destes microrganismos com seus meios. Isto exige que uma nova infraestrutura de suporte seja desenvolvida.
Rafael de Souza, coautor do estudo e pesquisador do GCCRC, destaca o longo caminho que ainda precisa ser percorrido para que se alcance uma infraestrutura satisfatória capaz de atender às demandas de pesquisa e de desenvolvimento industrial dos microbiomas. “A ciência de microbioma cresceu muito nos últimos dez anos, e a infraestrutura de conservação não acompanhou. Precisamos repensar e propor novos modelos, além de considerar com cuidado o que deve ser preservado e como deve ser preservado, frente às novas descobertas na área de microbioma”, explica o pesquisador.
Atualmente, ele investiga como o microbioma pode favorecer a resistência de culturas agrícolas à seca e ao calor. A equipe de microbioma do GCCRC conserva suas amostras de solo, rochas e plantas de espécies agrícolas e dos campos rupestres, por ora, na coleção de pesquisa do próprio centro enquanto não há infraestrutura consolidada para este tipo de armazenagem. Simultaneamente, alguns organismos são depositados em coleções de cultura do Brasil e do exterior.
Essas amostras são posteriormente analisadas pela equipe de bioinformática do GCCRC para quantificar e descrever os tipos de microrganismos, com as funções dos seus genes. A primeira descrição de microbiomas associados a espécies de Velloziaceae, importante família de plantas adaptadas às condições adversas dos campos rupestres, foi feita em 2019. Veja a notícia aqui.
De maneira sinérgica a esses estudos, a pesquisadora Isabel Gerhardt, da Embrapa Informática Agropecuária (Campinas, SP), lidera no GCCRC esforços para investigação dos genomas de diversas espécies de plantas Velloziaceae e outras espécies que só ocorrem nos campos rupestres. Os resultados servirão de base para a identificação de microrganismos benéficos para a formulação de inoculantes e para orientar estratégias de modificação genética de espécies agrícolas na plataforma de biotecnologia do Centro.
A importância de ser criar infraestrutura adequada para a ciência vai além de aspectos científicos. “O estabelecimento de infraestruturas sólidas para a pesquisa de microbiomas é essencial, tanto para os cientistas quanto para manter a confiança na ciência pelos cidadãos”, explica Bettina Schelkle, coautora do trabalho e membro do Conselho Europeu de Informação sobre Alimentos.
Por fim, os autores apontam que um possível caminho está na complementaridade entre coleções de cultura e biobancos. “Ambos devem trabalhar juntos para garantir que esse campo crítico de pesquisa de microbiomas tenha suporte efetivo. Isso exigirá a identificação de sobreposições de infraestrutura para avaliar o que é necessário e o que está disponível”, finaliza Ryan.
Sobre o GCCRC
O Centro de Pesquisa Genômica para Mudanças Climáticas (GCCRC) é um centro de pesquisa conjunto Embrapa e Unicamp criado em 2017, cuja missão principal é a criação de ativos biotecnológicos por meio da genômica aplicada à adaptação de cultivos aos estresses associados às mudanças climáticas. O GCCRC construiu e expandiu a Unidade Mista de Pesquisa em Genômica Aplicada à Mudança do Clima (UMiP GenClima), uma iniciativa entre as duas instituições estabelecida em 2012, com o objetivo de desenvolver soluções biotecnológicas para a adaptação de culturas agrícolas frente a cenários futuros de altas temperaturas e deficiência hídrica.
O GCCRC reúne cientistas em infraestrutura de pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) por meio do programa Centros de Pesquisa em Engenharia (CPE), da Embrapa e do Microbiome Support, financiado pelo programa de pesquisa e inovação Horizon 2020 da União Europeia.
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