Brasil,

Precisamos falar sobre educação sexual para crianças e adolescentes

  • Crédito de Imagens:Divulgação - Escrito ou enviado por  Jennifer Monteiro
  • SEGS.com.br - Categoria: Educação
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Mais uma vez a triste realidade vivida por inúmeras crianças e adolescentes em nosso Brasil - e que é muito comum, mas que a sociedade como um todo insiste em não ver - é jogada nas nossas caras. Uma criança de 10 anos - vejam bem, 10 ANOS! -, engravidou após ser estuprada pelo tio, de 33 anos. Na verdade, ela já vinha sofrendo abusos desde os seis anos de idade. Essa ser a sua primeira gravidez, portanto, deve-se a uma "mera" circunstância biológica: a idade fértil da mulher tem início justamente nessa faixa etária, 10 anos.

Diante do absurdo da situação, era natural que todas as atenções estivessem voltadas para mitigar o sofrimento da vítima, facilitando seu acesso ao aborto seguro, permitido no Brasil em três circunstâncias específicas:
- quando a gravidez decorre de estupro;
- quando a gravidez coloca em risco a vida da mãe; e
- em casos de fetos com anencefalia.

Apenas um desses requisitos é suficiente para que o procedimento possa ser realizado gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde - SUS, respeitando-se integralmente o preceito legal. No caso em questão, o gravíssimo fato de ter havido um estupro - contra uma menor de 14 anos, situação em que a presunção de violência é absoluta (art. 217-A, caput, do Código Penal) - já garantia-lhe esse direito.

Não bastasse isso, são mais do que conhecidos os riscos trazidos por gravidez tão precoce à saúde de uma menina que acabou de entrar na idade fértil: parto prematuro, anemia, aborto espontâneo, eclâmpsia, depressão pós-parto, entre outros.

Mas não. Houve quem achasse justo e legítimo negar a essa criança seu direito de interromper uma gravidez fruto da mais hedionda violência. Houve quem atribuísse a ela a culpa pelo acontecido. A vítima teve mais uma vez seus direitos de cidadã desrespeitados quando, por interesses políticos, um caso que deveria seguir em absoluto sigilo de justiça foi levado a público, e sua identidade exposta nas redes sociais. O estuprador? Bom...desse, pouco de falou.

Por fim o procedimento de interrupção da gestação acabou sendo autorizado pelo Tribunal de Justiça do Espírito Santo, e já realizado. A partir daí um novo desafio se apresenta, que é o de dar a essa menina todo o suporte psicológico necessário para superar tantos anos de estupro continuado, a gravidez indesejada, a luta desgastante para ter seu direito ao aborto respeitado e, não bastasse tudo isso, a exposição pública a que ela foi submetida

Infelizmente, como eu disse no início deste artigo, essa situação está longe de ser incomum. Em minha especialização na área de Atenção, Cuidado e Prevenção da Violência e Exploração Sexual da Criança e do Adolescente testemunhei casos terríveis. No dia a dia de meu exercício profissional, muitas vezes me deparo com situações parecidas. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, no Brasil quatro meninas de até 13 anos são vítimas de estupro a cada hora. Levantamento da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos (ONDH) apontou que a violência sexual acontece, em 73% dos casos, na casa da própria vítima ou do suspeito, e é cometida por pai ou padrasto em 40% das denúncias. E engana-se quem acha que isso acontece somente nas classes sociais mais baixas. A diferença é o tratamento dado ao caso - normalmente, nas classes mais abastadas, tudo é resolvido de forma privada. Caso ocorra gravidez e a opção seja pelo aborto, ele é realizado sem problemas em clínicas particulares.

Diante desse cenário, é urgente que valorizemos a educação sexual para crianças e adolescentes, tanto no âmbito familiar, quanto no escolar. Ao contrário do que muitos alegam, o papel da escola é importantíssimo, SIM, porque muitas famílias desconhecem ou têm dificuldade em lidar com o assunto em casa. E a desinformação só faz crescer o número de vítimas.

Com conteúdos adequados a cada faixa etária, crianças e adolescentes têm que ser preparados para saber distinguir o assédio e o abuso, venham de um estranho, ou de alguém conhecido. Têm que ser orientados a não permitir determinados tipos de aproximação, e a não esconder dos pais ou responsáveis quando eles acontecerem. E, alternativamente, devem saber a quem recorrer quando os assediadores forem justamente esses pais ou responsáveis que deveriam lhes dar proteção - buscar, por exemplo, o apoio de outro familiar de confiança, um professor, ou do serviço Disque 100. Para se ter uma ideia, esse serviço registrou em 2019 um total de 86.837 denúncias de violações de direitos humanos contra crianças e adolescentes. Destas, 11% estavam ligadas à violência de ordem sexual, o que equivale a 17 mil ocorrências. Esse número é apenas a ponta do iceberg, considerando a quantidade de casos que sequer chegam a ser notificados.

Cercear, por razões morais ou religiosas, o acesso de crianças e adolescentes a um conhecimento que pode livrá-las desse tipo de sofrimento, é desumano. É torná-las vulneráveis à exploração sexual. É expô-las a traumas psicológicos, gravidezes precoces e indesejadas, infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) e AIDS. É tirar-lhes o direito de viverem a infância e adolescência em sua plenitude, e desenvolverem-se como adultos felizes e saudáveis. É formar futuros pais e mães que não saberão dar orientação sexual a seus filhos, perpetuando um círculo vicioso de desinformação e desequilíbrio.

Lelah Monteiro

>> Sobre a autora: sexóloga, psicanalista e fisioterapeuta (www.lelahmonteiro.com.br). Atua em seu consultório em Perdizes (São Paulo, SP) como educadora sexual; terapeuta de casais, de família e sexual. Colunista e colaboradora de revistas, programas de rádio e TV com pautas relacionadas a comportamento, relacionamento, saúde, qualidade de vida e sexualidade. Atualmente comanda o quadro Sexpresso, todas as sextas-feiras, a partir das 13h, no programa Expresso Capital, na Rádio Capital AM.


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